A ARTE DE ESCREVER 23 – Hokku, haikai, haicai, hai-kai: a nomenclatura é um senryu

Hokku, haikai, haicai, hai-cai… a nomenclatura, a nomeação do terceto que nos chegou da literatura nipônica é bem o caso de um senryu – e senryu nomeia um poema satírico com a forma do… hokku.

Vamos a algumas considerações sobre essas variações, do âmbito da língua portuguesa e dos usos e costumes da língua portuguesa no Brasil, que nada tem de etimológicas, se devendo mais à fonética. Para outros artigos desta série sobre o haikai e demais formas poéticas correlacionadas, clique AQUI.

Em japonês, a palavra Hokku – 発句 (na imagem em destaque e no final) – designa os três primeiros versos do renku (haikai no renga), que vem a ser um poema mais longo, que encadeia sucessivamente tercetos e dísticos. O hokku é, pois, o processo histórico em que, de uma forma literária mais longa, se destacou a estrofe inicial – em 5/7/5 “sons” – para, com autonomia, se constituir em poema próprio, sem necessidade de mais “sons”, além dos dezessete que o fixam.

Sobre o hokku, ver, por exemplo, o verbete da Wikipédia em inglês, que está AQUI.

O exemplo de hokku apresentado – no verbete indicado acima – é o seguinte:

Bashô compôs o seguinte hokku em 1689, durante sua jornada por Oku (o Interior), enquanto escrevia renku na casa de um mestre de estação em Sukagawa, na entrada de Michinoku, na atual Fukushima:

ふうりゅうの初やおくの田植うた
fūryū no / hajime ya oku no / taue-uta

começos da poesia—
as canções de plantio de arroz
do Interior

(trad. Haruo Shirane)

Ouvindo as canções de plantio de arroz nos campos, Bashô compôs um poema que elogia o anfitrião pela elegância de sua casa e região – que ele associa aos “iniciantes” históricos (hajime) de arte poética (fūryū) – enquanto sugere sua alegria e gratidão por ser capaz de compor versos ligados, “poesia”. (In: Haruo Shirane, Traces Of Dreams, 1998. p. 161-163).

Vejamos de modo mais detalhado:

ふうりゅうの初やおくの田植うた
風流の初やおくの田植うた
fū ryū no / hatsu ya o ku no / taue uta
a primeira canção de plantação de arroz de Furyu
a primeira canção da (arte da) poesia vem da plantação de arroz

No perfil @haikai.brasil do instagram, esse poema aparece do seguinte modo:

A palavra haikai surge em japonês em haikai no renga – ou renku (ver, ainda na Wikipédia em inglês, AQUI). Consta que a palavra, isoladamente, passou a denominar o hokku, em português, no final do século XIX, para evitar um tabuísmo fonético.

Daí aos nossos dias, a nomeação dos três versos derivou para haicai, e assim chegou ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia de Letras. Em nossos dias, o VOLP também registra a forma haikai, considerando-a estrangeirismo originário do Japão.

Durante algum tempo, também circularam as formas hai-kai e hai-cai, felizmente em absoluto desuso em nossos dias, pois mais pareciam brincadeiras, e não chegaram ao VOLP. De fato, talvez fossem tão só jogos lúdicos, e uma das alternativas foi a opção de Millôr Fernandes para publicações hebdomadárias e para título de um dos seus livros.

Diante da variedade de opções, creio que podemos utilizar as palavras disponíveis para estabelecer nuances importantes para a leitura literária de poemas oriundos da fórma, da fôrma e do espírito original do hokku.

Assim, nomearemos por hokku os poemas originais, escritos em japonês, e que seguem os demais princípios do gênero em sua língua original (aqui, há uma licença histórica, pois o poema se origina na literatura chinesa – no entanto, há ao menos doze séculos se estabeleceu e frutificou, a partir do renga, no Japão).

No seu aclimatar ao português e aos trópicos brasileiros, aos poemas que na fórma e na fôrma – e ainda, em especia, no espírito – dialogam com o hokku tradicional, gosto de chamar de haikai.

Por outro lado, se o poema em português segue apenas parcialmente os princípios do hokku, melhor tratá-lo com o brasileiríssimo haicai.

Por outro lado, o nosso haikai brasileiro está quase sempre próximo do cotidiano, do humor, da crônica poética dos pequenos acontecimentos. Assim, quase sempre, fica mais próximo mesmo é do senryu, mesmo quando não contém características de sátira, de invocação do grotesco, de evocação do fescenino ou de temas do baixo-ventre.

Importa acrescentar algumas considerações adicionais:

1.
um terceto é um terceto e quase nunca um terceto é haikai, haicai ou senryu;

2.
um terceto com um eu-lírico não é jamais um haikai, muito provavelmente não é um haicai, e talvez nem seja um senryu, embora possa eventualmente ser um senryu;

3.
um senryu normalmente é um terceto, mas, dada a imensa síntese da língua japonesa e a prolixidade da língua portuguesa, tenho considerado aceitáveis senryu na forma do tanka (5/7/5 – 7/7);

4.
o haibun é formado por um pequeno texto (no máximo, cerca de dez linhas, embora essa medida seja do meu uso pessoal), que contextualiza uma situação ou um espaço e que é seguido por um haikai – devido as mesmas considerações do item anterior, também considero aceitável o haibun concluído com um tanka;

5.
o kigô, a palavra identificadora de estação, não parece fazer muito sentido no Brasil, uma vez que não temos estações bem definidas, o que ocorre no hemisfério Norte – no entanto, quando um kigô surge, cria efeitos que valorizam o poema; dizia Bashô que a criação de um único kigô justificaria a existência de um poeta;

6.
a cesura, ou kireji, é uma indicação gráfica ou uma palavra ou uma desinência – e é utilizada, no final do verso, para indicar uma quebra sintática; indica uma suspensão do ritmo, uma pausa, e, após ela, vem uma síntese, uma imagem que cristaliza as imagens dos versos anteriores;

7.
imagens – imagens sem tropos, sem metáforas, na ausência do eu enunciador, assim um haikai se entrega panteísticamente ao cosmos; quanto menos conectivos linguísticos, quanto mais substantivos sem adjetivos, sem juízos de valor, sem antropomorfização, mais próximos chegamos ao espírito do hokku – o observador zen, sem desejos, integrado à natureza, que se faz quadro estático no poema;

8.
as opções terminológicas e conceituais aqui expostas são muito pessoais; espero que possam, eventualmente, ser úteis – a poetas, a estudiosos, a curiosos.

Bibliografia
Eis alguns links do maior interesse para aprofundar as leituras sobre as diversas questões acima brevemente enunciadas:

Haikai

https://www.instagram.com/p/CjLSNe3rOU8/

https://www.instagram.com/haikai.brasil/

https://en.wikipedia.org/wiki/Hokku

https://en.wikipedia.org/wiki/Haikai

https://en.wikipedia.org/wiki/Renga

https://en.wikipedia.org/wiki/Senry%C5%AB

https://en.wikipedia.org/wiki/Renku

https://en.wikipedia.org/wiki/On_(Japanese_prosody)

https://en.wikipedia.org/wiki/Kireji

https://en.wikipedia.org/wiki/Kigo

https://en.wikipedia.org/wiki/Haiga

https://en.wikipedia.org/wiki/Haibun

https://en.wikipedia.org/wiki/Waka_(poetry)

https://en.wikipedia.org/wiki/Haikai

https://en.wikipedia.org/wiki/Haiku

HANAMI

Oficina Literária – Senryu

Concurso Haicai-Brasil

FLUÍDO CÉU

Senryu

https://www.estadao.com.br/emais/cronica-por-quilo/senryu-o-haicai-mundano/

https://www.recantodasletras.com.br/teoria-literaria-sobre-haikai/74900

https://www.recantodasletras.com.br/teoria-literaria-sobre-haikai/3593068

https://www.britannica.com/art/senryu

https://en.wikipedia.org/wiki/Senryū


発句

— o —

Quer dialogar?
Escreva-me:
rauer.rodrigues@ufms.br >.

Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia.

A ARTE DE ESCREVER

Informação importante: O Prof. Rauer ministrou, em diversos semestres, de 2008 a 2022, e ministra o curso novamente neste primeiro semestre de 2023, no PPG-Letras Mestrado e Doutorado em Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, a disciplina Oficinas de Escrita Criativa;
a pedido da Pangeia Editorial, alguns dos textos que serviram de diretrizes para as aulas, aqui comentados e ampliados, vem sendo publicados no Blog da Pangeia;
o professor, eventualmente, acolhe e aqui publica estudos realizados por alunos do Curso.

Além dos textos que então utilizou, inclusive alguns com os quais trabalhou na graduação, o professor vem incluindo outros, escritos especificamente para o o Blog da Pangeia, ampliando o escopo das aulas para um público além dos estudantes universitários.

Leia todas as “aulas”!!!
Vale a pena acompanhar!!!

Joakin Sereno
Editor-Executivo
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AULAS ANTERIORES DA SÉRIE A ARTE DE ESCREVER:

(Clique nas palavras com link para ir para a aula)

Apresentação – Como publicar seu livro

Aula 1 – Oito lições de Isaac Babel

Aula 2 – Segredos da ficção, por Raimundo Carrero

Aula 3 – Palahniuk: evite verbos de pensamento e outras dicas

Aula 4 – Quinze escritoras e as minúcias da Arte de Escrever

Aula 5 – 29 aforismos sobre o microconto

Aula 6 – Para escrever para crianças e jovens

Aula 7 – Síntese e concisão na escrita do haikai

Aula 8 – 33 dicas de escrita de Hemingway

Aula 9 – Técnica e engenho na escrita para tevê e cinema

Aula 10 – A arte de escrever na visão de Franz Kafka

Aula 11 – Ferramentas e dicas de Stephen King

Aula 12 – A concisão do infinito, com antologia de microcontos

Aula 13 – As lições de Camus, autor de “A peste”

Aula 14 – Vamos reinventar o soneto?

Aula 15 – Defina sua “profissão de fé” no ato de escrever

Aula 16 – Ernest Hemingway: um mergulho na “Teoria do Iceberg

Aula 17 – A ética e a estética do Vampiro

Aula 18 – A metalinguagem

Aula 19 – Uma metodologia da leitura

Aula 20 – Microconto: cacos, estilhaços e fótons

Aula 21 – Haikai, Tanka, Renga, Senryu

Aula 22 – Do conto ao nanoconto

Aula 23 – Hokku, Haikai, Haicai, Hai-kai – a nomenclatura é um Senryu

A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.

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