A ARTE DE ESCREVER 7 – O haikai: síntese, concisão e expressividade

Haikku, haicai, haikai, hai-cai, hai-kai, hokku, além de renga e tanka, são expressões que designam milenares formas poéticas originárias da China continental e que se aclimataram e desenvolveram no Japão insular. A forma mais usual, no Brasil, para mencionar esse poema de três versos é haicai. Haikku e hokku são as transliterações que se aproximam da fonética do japonês. Renga e tanka são formas originárias das quais se extraiu a forma sintética e concisa do haikai (há versões históricas diferentes para a origem, considerando que o haikai vem do waka, um poema longo, e que o tanka e o renga, presentes no waka, surgem socialmente de modo autônomo na sequência e então geram o renga ─ tal questão histórica não nos é importante deslindar nesse momento).

Tratamos hoje da expressividade do Haikai, forma que preferimos, por indicar ao mesmo tempo a ruptura com a origem nipônica, em transgressão que contempla a tradição, presta-lhe tributo, buscando dar à língua portuguesa a força vital que anima os singelos três versos que o configuram formalmente.

Na origem, o renga era um poema longo, encadeado, construído em embates orais, públicos, entre dois poetas, que faziam ─ para nos valermos de um paralelo com as tradições da oralidade da poética portuguesa medieval ─ voltas em torno de um tema e deixavam em comentário complementar um mote para o duelista. Na estrutura, as voltas eram de três versos, com cinco, sete e cinco sílabas, e o mote era em dois versos de sete sílabas. Há algo, nestes cinco versos em desafios sucessivos, que se assemelha às sextilhas em heptassílabos dos cantadores nordestinos. As duas formas poéticas, o haiku e o tanka, ao se tornarem autônomas, ganham critérios constitutivos que diferem das características desse primeiro momento.

Nas palavras de Paulo Franchetti (em livro em que é co-autor, e que consta nas referências abaixo), “elaboradas para uma arte coletiva, as regras do haikai-renga visavam a desenvolver o espírito de colaboração, modéstia e delicadeza; para uma arte solitária, ganham em artificialidade e convencionalismo gratuito o que perdem em vida e necessidade social”.

No renga, ou no waka, portanto, havia a semente do tanka, constituído pelos cinco versos em 5-7-5 / 7-7, e do haikai, que se constrói tendo por referência os três versos iniciais. A emancipação do tanka e do haikai originais gerou um conjunto de regras formais e de conteúdo para as novas formas poéticas. O haikai passou a exigir elementos que identificassem uma estação do ano, nomeado kigo, a paz espiritual zen, certa oposição panteísta que integra o pequeno e próximo ao grande, ao cosmos ─ isso, entre outras características.

Em japonês, na escrita ideogramática e na transliteração para a escrita fonética, os versos têm todas as sílabas contadas, como já ocorreu em período inicial da literatura de língua portuguesa; não há preocupação com rimas, mas há construção interna de efeitos sonoros, baseados na ortografia nipônica em que a maioria das palavras apresentam alternância de consoantes e vogais, com pouquíssimos chiados e nasalizações. Há muitas outras diferenças de uma língua para outra ─ mas aqui devemos nos concentrar na escrita do haikai em português.

Desde sempre se constituiu um desafio traduzir os haikai do japonês para o português, e há pelo menos um século os estudiosos de poesia vem se debruçando sobre a forma que o pequeno poema nipônico deve ou deveria ter em português. Uma observação: a origem chinesa e a tradição do poema na China pouco são mencionadas pelos estudiosos do haikai.

Otávio Paz contrapõe as influências chinesas no universo nipônico ─ diz ele: “Apesar da influência dos clássicos chineses, a poesia [japonesa] nunca perdeu, nem nos momentos de maior debilidade, essas características ─ brevidade, clareza do desenho, mágica condensação ─ que a situam, precisamente, no extremo contrário da chinesa”.

Parece consenso que se deve buscar o poema de dezessete sílabas, no formato preferencial de 5-7-5 sílabas. Há, no entanto, escritores que nomeiam de haikai, ou uma das palavras que lhe são próximas, a qualquer poema curto de três versos. E há muito o haikai brasileiro se emancipou das diretrizes de conteúdo; alguns autores o fazem tão só como esquetes humorísticas, outros o tornam intimista, outros vagueiam longe de qualquer índole zen-budista. Talvez fosse melhor chamar essas peças, assim tão heteróclitas, de poemas, ou de microcontos, ou de aforismos.

Para manter algo mais consistente da tradição original do haikai, além de certa placidez na observação do mundo, o poema há que conter alguma reverberação sonora na seleção lexical ─ rimas internas, assonâncias, sílabas em eco.

Desde Matsuo Bashô (1644-1694), por muitos considerado o maior haikaista da literatura nipônica, o cotidiano da vida simples também integra a temática do haikai. Essa vertente, mais que poemas com kigo e índole zen, apresenta apelo para a sensibilidade da língua portuguesa, e deve ou deveria ter forte apelo, em particular, para os autores brasileiros. Ao tratar de Bashô, Otávio Paz como que complementa a citação dele que fizemos acima: “O haiku converte-se na anotação rápida, verdadeira recriação, de um momento privilegiado: exclamação poética, caligrafia, pintura e escola de meditação, tudo junto”.

Na primeira metade do século XX, autores modernistas ou pré-modernistas (nessa estranha nomenclatura exclusiva da literatura brasileira), como o poeta Guilherme de Almeida e o ficcionista Monteiro Lobato, trabalharam com o haikai. O poeta propôs uma forma fixa mais rígida para se aproximar da sonoridade nipônica. Na proposta, haveria rima interna entre a primeira palavra e a última palavra do segundo verso e rima entre o primeiro e o terceiro verso.

Uma variação, que provavelmente Guilherme de Almeida não endossaria, seria o poema apresentar rimas internas sem local fixo e rimas entre versos sem definir entre quais versos. Em nossa perspectiva, a literatura é simultaneamente diálogo e ruptura com a tradição, é um avançar que contém e dialoga com o passado, acrescentando novidades expressivas e representando um novo momento do homem e da sociedade humana ─ ou, de modo mais apropriado, das sociedades humanas.

Seja qual for a opção quanto à sonoridade, o poema deve conjugar ritmo e sonoridade que apresentem fluidez na leitura, com pausas e entonação harmônicas entre si, dando força expressiva ao conteúdo do haikai. E no conteúdo, além do já anotado, nos ensina Masuda Goga que o haiku deve conter “wabi (sentimento de profunda solidão, mistério de solidão) ou sabi (página do tempo, mistério da transformação, desolação e beleza da solidão)”. O tradutor de Goga anota que a tradução e explicação das duas palavras “não passam de aproximações que não exprimem toda a singularidade e profundidade dessas palavras, produtos puros, digamos assim, da multimilenar cultura japonesa”.

Guilherme de Almeida, e nele reconhecemos méritos imensos no pioneirismo, mas, para além da rigidez que engessa de modo artificial o poema, laborou em erro também ao dar títulos aos haikais. Um haikai, na ausência da subjetividade de um eu lírico, ao plasmar imagens como uma fotografia da natureza ou um instantâneo da existência, o faz de tal modo que o tropos, ou seja, a representação lúdica plasmada em palavras poéticas, ganham densidade, espessura, dimensões e polissemia que o título minimiza, qualifica, empobrece.

Eis três máximas de Matsuo Bashô sobre o Haikai:

  1. O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do bambu.
  2. As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito.
  3. Se alguém descobrisse um só kigo ao longo da vida, isso já seria uma herança preciosa a legar à posteridade.

O mais influente haikaísta brasileiro talvez seja Hidekazu Masuda Goga, um dos fundadores, em 1987, do Grêmio Haicai Ipê, instituição que divulga e estuda a forma do haikai no Brasil em diálogo permanente com a cultura japonesa. Em 1993, Goga elaborou um decálogo, divulgado pela revista CAQUI nº 0, do mês de maio, que reproduzimos abaixo, mantendo opções ortográficas e de destaque:

  1. O Haicai é poema conciso, formado de 17 sílabas, ou melhor, sons, distribuídos em três versos (5-7-5), sem rima nem título e com o termo de estação do ano (kigo).
  2. O Kigo é a palavra que representa uma das quatro estações: primavera, verão, outono e inverno; p. ex., IPÊ (flor de primavera), CALOR (fenômeno ambiental de verão), LIBÉLULA (inseto de outono) e FESTA JUNINA (evento de inverno).
  3. Cada estação do ano tem o próprio caráter, do ponto de vista da sensibilidade do poeta; p. ex., Primavera (alegria), Verão (vivacidade), Outono (melancolia) e Inverno (tranquilidade).
  4. O haicai é poema que expressa fielmente a sensibilidade do autor. Por isso:
      1. respeitar a simplicidade;
      2. evitar o “enfeite” de “termos poéticos”;
      3. captar um instante em seu núcleo de eternidade, ou melhor, um momento de transitoriedade;
      4. evitar o raciocínio.
  5. A métrica ideal do haicai é a seguinte: 5 sílabas no primeiro verso, 7 no segundo e 5 no terceiro; mas não há exigência rigorosa, obedecida a regra de não ultrapassar 17 sílabas ao todo, e também não muito menos que isso. E a contagem das sílabas termina sempre na sílaba tônica da última palavra de cada verso.
  6. O haicai é poemeto popular; por isso usa-se palavras quotidianas e de fácil compreensão.
  7. O dono do haicai é o próprio autor; por isso, deve-se evitar imitação de qualquer forma, procurando sempre a verdade do espírito haicaísta, que exige consciência e realidade.
  8. O haicaísta atento capta a instantaneidade, qual apertar o botão da câmera para obter o “snap”.
  9. O haicai é considerado como uma espécie de diálogo entre autor e apreciador; por isso, não se deve explicar tudo por tudo, a fim de tornar possível a associação de ideias por parte de quem o avalia.
  10. O haicai é uma criação poética emanada da sensibilidade do haicaísta; por isso, deve-se evitar expressões de causalidade ou de sentimentalismo vazio.

Do ponto de vista formal, o haikai no Brasil deve, então, ser construído em versos de 5-7-5 sílabas, com sonoridades internas que surpreendam e amplifiquem significados, com ausência de subjetividade evidente, embora possa conter vestígios do móvel íntimo do poeta a partir da descrição objetiva da natureza ou do homem, podendo conter elementos de riso, de panteísmo, de sensualidade ou outros, o que indicia um caminho para o ser-estar humano. Ou seja, a síntese contém a experiência universal, e os três versos se fazem amálgama de “duas realidades inseparáveis e que, no entanto, jamais se fundem inteiramente: o grito do pássaro e a luz do relâmpago” (Otávio Paz).

Importa, a cada poeta, a cada escritor, a cada novo texto, a cada novo poema, reinventar o mundo, reinventar a literatura, reinventar-se, sendo o novo ─ que contém o inexprimível desconhecido e se torna verbo ─ agregado ao passado inteiro da humanidade que revive nos interstícios das letras que compõem, revisam, refazem, recompõem e dão à luz a visão de mundo do poeta.

Vejamos um poema de Bashô, em múltiplas traduções, como exemplo da arte do haikai.

1. furu ike ya
2. kawasu tobikomu
3. mizu no oto

A tradução lexical ─ literal, incorporando polissemias de cada palavra ─ seria algo assim:

1. grande lago cheio (subentende-se um ar de ancestralidade no lago, que pode ser lido também como um tanque)
2. rã mudar voar cair mergulhar
3. o som da/na água

 

Um templo, um tanque musgoso
mudez, apenas cortada
pelo ruído das rãs
saltando à água… mais nada
(Trad. Wenceslau de Moraes, [1920]?; tradução literal: “Ah, o velho tanque! E o ruído das rãs, / atirando-se para a água!…”).

 

Tatalou e caiu
com onda espiralada
fragor de entrudo
(Recriação de Guimarães Rosa, 1946)

 

o velho tanque
rã salt’
tomba
rumor de água
(Trad./recriação de Haroldo de Campos, 1969)

 

Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.
(Versão de Olga Savary, 1980, para tradução original de Otávio Paz, [1957?]; a versão literal do poema: Velho tanque / uma rã que mergulha, / ruído de água).

 

Um velho tanque
Uma rã nele mergulha
Ruído nágua
(Trad. Oldegar Vieira, 1975)

 

velha lagoa
o sapo salta
o som da água
(Trad. Paulo Leminski, 1983)

 

O velho tanque ─
Uma rã mergulha,
Barulho de água.
(Trad. Paulo Franchetti, Elza Taeko Doi e Luiz Dantas, 1990)

 

velho lago
mergulha a rã
fragor d’água
(Trad. Alberto Marsicano, 1997)

 

salta a rã
para dento do velho tanque ─
plof!
(Trad. Joaquim M. Palma, 2016)

 

*   *   *

O haikai é uma forma fixa com diversas diretrizes de conteúdo para sua feitura. Transgredir a tradição é sempre um imperativo pessoal do autêntico escritor por ser, também, uma exigência para melhor representar novos e diferentes contextos. Isso só é possível com o domínio das normas e o conhecimento dos escritores que o antecederam. Exercite-se nos procedimentos e libere a criatividade assim, será mestre e será inventor. Bom exercício do haikai e até a próxima semana.

 

REFERÊNCIAS:

BASHÔ, Matsuo. O eremita viajante [ haikus – obra completa]. Org. e trad. Joaquim M. Palma. Porto, Portugal: Assírio & Alvim, 2016.

BASHÔ, Matsuo. Trilha estreita ao confim. Trad. Kimi Takenaka e Alberto Marsicano. 1. reimp. São Paulo: Iluminuras, 2008. (1. ed., 1997).

FRANCHETTI, Paulo; DOI, Elza Taeko; DANTAS, Luiz. Haikai. 3. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996. (1. ed., 1990).

FRANCHETTI, Paulo; DOI, Elza Taeko. Haikai: antologia e história. 4. ed., revista. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996. (1. ed., 1990).

GOGA, H. Masuda. O haicai no Brasil. Trad. José Yamashiro. São Paulo: Oriento, 1988. (Apoio: Aliança Cultural Brasil-Japão). (1. ed. no Japão, Burajiru no haicai, 1986).

GOGA, H. Masuda; ODA, Teruko Fujino. Natureza – berço do haicai; kikologia e antologia. [São Paulo]: Diário Nippak, 1996. (Edição comemorativa do centenário de amizade Brasil-Japão).

GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org.). Haicai – boa companhia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SAVARY, Olga (Org. e trad.). O livro dos hai-kais. Prefácio de Otávio Paz; desenhos de Manabu Mabe. São Paulo: Massao Ohno; Roswitha Kempf, 1980.

 

Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia

Informação importante: O Prof. Rauer ministrou, há alguns anos, na pós-graduação de Letras / Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, um Curso de Escrita Criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados pelo professor, vem sendo publicados e continuará a ser replicados no Blog da Editora Pangeia ao longo das próximas semanas e meses. Além dos textos que então utilizou no curso, o professor incluirá outros, ampliando o escopo do curso para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar. (Rízio Macedo Rodrigues, Editor, Editora Pangeia).

 

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