A ARTE DE ESCREVER 16 – Hemingway: Um mergulho na “teoria do iceberg”

 

 

The dignity of movement of an iceberg

is due to only one-eight of it being

above water.

Ernest Hemingway

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“Para nos envolvermos com a literatura”, afirma Anthony Burgess sobre a obra de Hemingway, “primeiro precisamos nos envolver com a vida.” Com essa consideração, Burgess encerra a biografia Ernest Hemingway, lançada no final dos anos 1970. Trata-se de estudo permeado por compassiva ironia com o homem Hemingway, confrontando a mitologia criada pela personalidade esfuziante do escritor com o resultado das obras que edificaram sua glória ainda em vida. “A melodia de Hemingway foi uma contribuição nova e original para a literatura mundial”, avalia Burgess; “está nos ouvidos de todos os jovens que se dispõem a escrever”.

Com certeza, os contos e os romances de Hemingway continuam leituras fundamentais para os escritores dos nossos dias, porque – e continuo citando o último parágrafo do livro de Burgess – “sua obra […] é uma força seminal”. Esse vigor está em romances como Adeus às armas e Por quem os sinos dobram, em dezenas de contos memoráveis, imperecíveis obras-primas do gênero, e na novela O velho e o mar. Seu estilo seco e telegráfico marca de modo profundo uma das vertentes mais densas e afortunadas da prosa romanesca do século XX. No entanto, a grande contribuição de Hemingway foi, ao representar de modo realista o cotidiano reles de pessoas comuns, ainda que, em alguns poucos casos, em momentos especiais, marcar a narrativa com índices e símbolos geradores de significados profundos sem trair nenhum aspecto da realidade chã e sem forçar a linguagem com enfeites estilísticos ou a narrativa com divagações pseudofilosóficas.

Hemingway definiu esse modo de narrar forjando a metáfora do iceberg. Em entrevista em um café de Madri, em maio de 1954, ele disse: “Se é que serve para alguma coisa, escrevo baseado no princípio do iceberg. A dignidade do movimento do iceberg é que somente um oitavo de sua grandeza brilha ao sol: há sete oitavos submersos, para cada parte que aparece. O que você conhece, pode ser eliminado, e a parte que não aparece só robustece o iceberg.”

Carlos Baker, em Hemingway: o escritor como artista, explica: “As áreas visíveis brilham com as duras luzes factuais do naturalista. A estrutura de suporte, submersa e invisível, na sua maior parte, exceto para o explorador paciente, é construída com um tipo diferente de precisão – o do poeta-simbolista.”

Baker complementa que o leitor encontra nos contos de Hemingway, “abaixo da superfície, […] símbolos operando em todos os lugares e numa série de belas cristalizações, suficientemente compactas e flutuantes para poder carregar um peso considerável”. O procedimento realizado por Hemingway é de arquitetura narrativa e se realiza no discurso por escolhas lexicais: “A sua mais profunda confiança era colocada no efeito cumulativo de uma declaração cuidadosamente escolhida e ostensivamente simples, com a repetição ocasional de frase-chave para uma ênfase temática”, explica Carlos Baker

Apresentamos, a seguir, antecedendo leituras de contos de Hemingway que desvelam a função expressiva do iceberg, uma série de opiniões sobre a obra do escritor, para contextualizar de modo mais abrangente o seu modo de narrar, o peculiar estilo de seu texto e o que podemos nomear de “Teoria do iceberg” no âmbito da história da literatura e das teorias do conto.

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“Todos os bons livros”, definiu Hemingway em 1933, conforme nos reporta Baker, “são semelhantes no fato de serem melhores do que se realmente tivessem acontecido; e, depois de termos acabado de ler um deles, sentimos que tudo que foi descrito nos aconteceu e que, depois disso, tudo nos pertence; o bom e o mau, o êxtase, o remorso e a tristeza, a gente e os locais e como o tempo estava. Quem consegue dar isso ao leitor poderá, então, considerar-se um escritor”.

Para alcançar o efeito cumulativo do iceberg, a linguagem deve buscar a pureza mais completa, a ausência de efeitos decorativos, a – se assim podemos nos expressar – essência da linguagem narrativa como ação pura, como descrição substantiva. Os substantivos são signos que se tornam símbolos pela proximidade modalizadora de outros substantivos (eventualmente, de adjetivos, advérbios, apostos e outros complementos). O texto encena a visualização do cenário e da ação. O pathos que anima o sentimento do texto se dá pela seleção lexical que expõe atos, jamais pela descrição emocional, adjetivada, do narrador, que evita também que as personagens vocalizem tais juízos. A moralidade e a ética do texto são depreendidas da concretude naturalista descrita e fica a cargo da apreensão sensorial e cognitiva do leitor.

“Hemingway sempre escreveu devagar”, anota Baker, “fazendo uma revisão muito cuidadosa, cortando, diminuindo, substituindo, experimentando com sintaxe para ver o que uma frase podia transmitir mais economicamente, para, depois, jogar fora todas as palavras que não faziam falta.”

“A brevidade e a concisão de sua prosa”, afirma Nazario, “deu nova vida à literatura”; “Hemingway, por intermédio desta simplicidade e economia de palavras, logrou dizer muito mais do que outros escritores que lançaram mão de um vocabulário mais amplo”.

Luiz Antonio Aguiar assim sintetiza a literatura de Hemingway:

o efeito da leitura de conflitos e dramas submetidos a essa linguagem [desadjetivada, desmetaforizada] e narrativa [fluente] é tremendo. Como uma bomba de efeito retardado, o que não explode diretamente nas falas dos personagens e na narração fica remoendo no íntimo do leitor, como uma insaciedade. […] mesmo o leitor em inglês terá sido vítima do mito Hemingway, tanto que muito pouco se destaca que, deparando de perto com a violência de sua contemporaneidade, ele a expôs como a melhor forma que encontrou para expressar seu repúdio e, ao mesmo tempo, sua ânsia pela humanização da existência.

Por seu lado, Alex Viany afirma ser Hemingway “um dos escritores mais influentes do seu tempo – principalmente pelo estilo elíptico e a dialogação hard-boiled de seus contos mais discutidos”. Em tradução livre, a expressão hard-boiled pode ser entendida como “dura, impiedosa, cínica e realista”. Já o editor Ênio Silveira anotou: “Hemingway marcou a literatura americana com sua presença física e seu estilo novo, insólito pelo despojamento quase total, pela linguagem direta e cortante, por uma simplicidade que realçava o essencial e desprezava complacências psicológicas”.

Veiga Fialho realça “a precisão formal com que Hemingway escrevia”, destacando “a linguagem direta, as pinceladas curtas, o todo descrito pela exatidão minuciosa do pormenor, as personagens reais, palpáveis quase”. Em outra clave, Giselle Beiguelman-Messina afirma que “o ‘belo’ hemingwayano pode ser definido como o eterno, sendo essa eternidade definida pelo princípio de uma verdade absoluta e imutável […] [que] encobre uma fórmula de negação da política burguesa e da sociedade de classes por meio da construção do mito da comunidade ideal. […] o princípio hemingwayano é, acima de tudo, moral, jamais dado por uma suposta herança biológica ou pela história”.

Na “Introdução” à biografia Ernest Hemingway – o romance de uma vida, Carlos Baker sintetiza:

Foi um dos mais notáveis escritores que a América produziu, um estilista que fez época, com um talento superlativamente original que gerou multidões de imitadores em todos os quadrantes do mundo e desferiu golpes violentos contra a afetação, o pretensiosismo e a falsidade. Escrever ficção era difícil para ele. A intensidade da sua aplicação era tamanha que, em pouco tempo, ficava literalmente exausto e um dia de trabalho, para Hemingway, não excedia normalmente as quinhentas ou seiscentas palavras. “Realmente”, escreveu ele em 1951, “é uma profissão dura; por muito que você a ame. Amo-a acima de qualquer outra coisa. Mas é muito difícil se um homem realmente se entrega a ela de alma e coração”.

Para John L. Brown, “Hemingway interessa-se pela realidade só na medida em que a pudesse superar e conferir-lhe um sentido simbólico. […] Mas em Hemingway o que acontece ocorre debaixo de uma superfície voluntariamente realista em profundezas obscuras e o mais das vezes terríficas”.

Hélio Pólvora afirma que nos contos de Hemingway

ressuma muitas vezes a vida cruel, a vida rude, cara-a-cara, sem disfarces [, com a] pintura direta, a narração sem artifícios, a representação ao vivo. Daí o poder dos seus diálogos e, nos entrechos descritivos, da frase curta. […] Louva-se muito o estilo conciso, direto, incisivo de Hemingway. […] estilo denso e concentrado, em que pululam os significados e as metáforas da metalinguagem […]. Nelas escorre a vida. A verdade jamais é sobrecarregada pela arte da composição, porém desnudada de golpe. Poucas vezes Hemingway sacrificou a exatidão do que pretendia expor, a uma frase de efeito.

Para encerrar as citações da crítica, duas diferentes passagens em que Gabriel García Márquez evoca seu colega de Prêmio Nobel: “o melhor de seus contos é que dão a impressão de estar faltando algo, e é exatamente daí que provêm seu mistério e sua beleza”; “Nosso Hemingway era um homem confuso pela incerteza e brevidade da vida, que nunca teve mais do que um convidado à mesa, mas conseguiu decifrar como poucos na história humana os mistérios práticos do ofício mais solitário do mundo”.

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Ao ser agraciado com o Nobel de Literatura, Hemingway enviou um curto agradecimento de sete parágrafos. Eis o parágrafo no qual sintetiza sua visão da literatura e do escritor, sua impetuosidade como renovador, seu elogio à solidão – aquela que o faz estar isolado ao criar o novo e aquela que o distancia de seus concidadãos:

Escrever é, na melhor das hipóteses, uma vida solitária. As organizações de escritores aliviam a solidão do escritor, mas duvido que melhorem a sua produção. Sua estatura pública cresce à medida que se despoja de sua solidão, e muitas vezes sua obra se deteriora. Porque ele a constrói sozinho, e se for um escritor bom precisa enfrentar a eternidade, ou a sua ausência, a cada dia. Para um verdadeiro escritor, cada livro deve ser um novo começo, onde ele torna a tentar alcançar alguma coisa que nunca foi feita, ou que outros já tentaram e fracassaram. E às vezes, se tiver muita sorte, ele terá sucesso. Como seria simples a produção literária se bastasse escrever de maneira diferente o que já foi bem escrito. É por termos tantos bons escritores no passado que cada escritor é levado muito mais longe do que pode ir, a um lugar onde ninguém pode ajudá-lo. Já falei demais para um escritor. Os escritores devem escrever o que têm a dizer, e não falar. Eu lhes agradeço mais uma vez.

Isso foi em 1954; mas já em 1942, Hemingway enunciara: “A tarefa do escritor é dizer a verdade” – e tal definição se manteve do início ao fim de sua carreira, sendo pressuposto cada vez mais exigente, mais complexo e mais adensado. Em entrevista no final dos anos 1920, já dissera que seu objetivo era “[e]screver o que vejo e o que sinto da melhor e mais simples forma que me for possível”. Sua invenção partia, pois, do que efetivamente conhecia e vivenciara, ainda que “vivenciada” a partir de relatos de terceiros, escrevendo de modo coloquial, simples, objetivo, descarnado. Assim se define, em suas narrativas, o cenário realista, a ação permanente e a sucessão encadeada de cenas. Desse modo, busca apreender e descrever simultaneamente – a cada ato, a cada palavra lançada na folha em branco – o imediato, fugaz, e o significado perene. Para amalgamar essas amplas e complexas intenções, escrevia à maneira de um iceberg.

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Vejamos, agora, o iceberg em movimento na arquitetura de três contos de Hemingway.

Julian Nazario, no livro Ernest Hemingway, da Série Princípios, da Editora Ática, aborda os contos “As neves do Kilimanjaro”, “A curta e feliz vida de Francis Macomber”, “Os assassinos” e “Colinas como elefantes brancos”. Antes, ao apresentar o escritor como artista, Nazario assim expôs a característica que Hemingway havia definido como central em sua obra:

A qualidade opaca de seus textos, uma opacidade que transparece com nitidez nos contos, se relaciona à metáfora do iceberg. Apenas uma milésima parte [sic] do iceberg fica exposta ao leitor. O resto está abaixo da superfície e terá que ser rastreado mediante uma leitura cuidadosa. Hemingway, portanto, não é um escritor que mostra todas as cartas que tem na mão. Embora não seja um escritor hermético, constrói um texto cheio de espaços vazios e deixa para o leitor a fascinante tarefa de preencher esses espaços através de sua interpretação.

Ao percorrer a trajetória da obra de Ernest Hemingway, dos primeiros aos últimos livros, abordando romances (neles incluindo O velho e o mar) e contos, Nazario, em quatro diferentes momentos, nos títulos de subcapítulos, se vale da palavra “símbolo”. Destaca, assim, o efeito narrativo de uma ação, de uma palavra ou de uma escolha narrativa ter significado que transcende suas valências culturais imediatas – desse modo, palavras, parágrafos e cenas ganham sentidos profundos, figurados, alusivos, muito além das acepções no dicionário, no texto ou no drama. Em diversos contos, por exemplo, a insônia marca momentos agudos de enfrentamento (guerra, véspera de uma luta de boxe, ferimentos físicos dilacerantes) e o sono surge como um prenúncio da morte. Poderíamos multiplicar os exemplos, mas importa mais destacar que os “novos” significados são cuidadosamente construídos por proximidade lexical com outros termos ou pela reiteração narrativa dos motivos, sequencialmente modificados por nuances cumulativas, e vão muito além do significado de prolepse, de antecipação narrativa, como nos exemplos mencionados da insônia e do sono.

Vamos a um exemplo prático. Um ponto alto do procedimento do iceberg está em um conto em que a parte submersa sequer se liga a palavra efetivamente textualizada: trata-se do conto “Colinas como elefantes brancos”.

Um homem e uma mulher – um casal – estão em cena, em isolada estação de trem de uma região rural. Entre drinques, aguardam o comboio para Madri. A conversa entre eles é trivial. A mulher compara, por duas vezes, as colinas que estão à distância a elefantes brancos. O homem fala de uma cirurgia, assegura que é simples e que tudo sairá bem. Em certo momento, a mulher se irrita com ele. Uma atendente do bar informa que o trem chega em cinco minutos. Ele diz que após a operação tudo continuará como antes. A mulher se acalma. Tudo indica que ela irá se submeter à cirurgia.

O diálogo, em nenhum momento, esclarece qual é a operação de que eles tratam. Como o narrador funciona tão só ao modo de uma câmera externa, o leitor precisa deduzir. Um índice é a evocação aos elefantes brancos. Na primeira, parecem colinas; na segunda, montanhas. Parecem distantes; na sequência – com o avanço da manhã – a névoa dissipa e a claridade aumenta, e então parecem maiores. Esse movimento sinaliza que dentro dela cresce um feto. A cirurgia que o homem defende é um aborto, palavra que nenhum deles menciona.

Nazario realça que “[e]lefantes brancos não existem”, que o feto surge assim “como algo monstruoso e indesejável que, aparentemente, perturba o casal”. Anota duas falas do homem: em uma, ele assegura que aquele é o único problema que os perturba; na outra, e como consequência da situação, é algo que os deixa infelizes. Nazario anota outros símbolos: a estação está em um terreno árido, exposto às inclemências da natureza, em particular do sol, enquanto do outro lado estão as colinas, as montanhas, as árvores e sombreados acolhedores – “Há, também, campos de cereais, uma clara alusão à fertilidade”. Os campos semânticos da aridez e da fertilidade se ligam, respectivamente, à palavra cirurgia e a termos do campo semântico indicadores da gravidez e da gestação.

A tensão do conto gira não só em torno de fazer ou não a cirurgia, em ter ou não ter filho, mas em ter ou não ter a vida de sempre, aquele antigo amor conjugal que havia, e que está agora comprometido pela gravidez. Ele assegura que tudo ficará como antes, ela parece não querer o aborto, mas quer mais ainda manter o relacionamento como era antes.

Tudo isso é construído sem ser dito: o mundo é representação, a vida se faz por fios soltos, desconexos, e os humanos estão imersos em impressões, ilusões – mas a representação da vida literariamente referenciada alinha elementos que lhe dão sentido, que esclarecem o fato bruto por diversos índices que estão no seu entorno. É o iceberg em ação.

“Colinas como elefantes brancos”, segundo Nazario, “é uma soberba demonstração de como Hemingway trabalha por alusões”. Trata-se, Nazario conclui, de narrativa que faz o “leitor se sentir perturbado”, exigindo ser “[lido] com atenção”, para que se chegue ao “nível mais profundo [do] conto”, cuja “simplicidade enganadora […] mostra a complexidade da arte de Ernest Hemingway”.

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Carlos Baker descreve a construção de sentidos e significados simbólicos pela arquitetura do iceberg ao analisar os quarenta e cinco contos das três primeiras coletâneas de Hemingway, publicadas em 1925, 1927 e 1933: “Juntos ou separados”, ele assevera, “estes contos encontram-se entre os melhores da literatura moderna”: “são tão fáceis de ler como narrativas puras e diretas que o leitor fica disposto a aceitá-las pelo seu valor aparente – contentando-se em admirar as linhas incisivas e as curvas bem nítidas de um oitavo do iceberg que fica acima da superfície e ignorar as causas reais da dignidade ou valor do movimento”.

Em outras palavras, como avalia Baker, “[a]pesar de Hemingway se ter exercitado a fundo na observação de objetos naturais, sua precisão na descrição não impedia que esses objetos fossem usados de modo simbólico”.

No conto “Um idílio alpino”, o enredo da morte de uma camponesa – no inverno, no alto da montanha – e seu sepultamento, muito tempo depois, tem seu cerne na expressão “nunca fazer seja o que for por muito tempo”, reiterada algumas vezes no conto. Há, ainda, a oposição geográfica entre o alto (montanha) e o baixo (o vale), que carrega cargas do que é anormal e do que é normal como modo de viver. Assim, passar o inverno em cabana isolada, no alto da montanha, não é normal, e por isso desumaniza, enquanto o sol da primavera, no vale, descortina isso por oposição, sendo espaço natural para a vida. Só compreendemos os significados construídos pela narrativa ao desvelarmos os símbolos que se ocultam sob o enredo naturalista, em que as personagens sempre se portam com atitudes consoantes à naturalidade dos momentos vivenciados.

Dois tradutores optam pelo título “Idílio alpino” e dois por “Um idílio alpino” para o original “An alpine idyll” – e a escolha do título com artigo indefinido parece mais adequada. O índice de indeterminação acresce à expressão certa ironia que antecipa o clima anti-idílico que é retratado, pois é conto algo macabro, que tem a morte como assunto central. O narrador e um amigo, assim como o camponês e sua mulher morta, passaram muito tempo no inverno no alto da montanha. O sol os magoava na montanha e os ofusca no vale. Veem à distância o sepultamento da mulher, alguns corvos passeiam nos arredores. São dois estrangeiros em um vilarejo na Itália. O amigo, cansado, dorme com a cabeça na mesa da estalagem. O viúvo vai para um lugar em que não saibam da sua história, para beber. E o estalajadeiro e o coveiro, bebendo vinho e cerveja, contam aos dois estrangeiros que o viúvo, ao longo do inverno, pendurava o lampião na boca do cadáver congelado pelo inverno rigoroso. Com isso, lhe deformara o rosto, o que só se percebe quando, ao chegar a primavera, o corpo descongela. Agora, ele fora beber em outro lugar; e os estrangeiros, o estalajadeiro e o coveiro bebem enquanto o episódio é contado. Eis o fecho do conto:

 

– E agora? ­– disse John. – Vamos comer?

– Está bem – eu disse.

 

Como se percebe, os dois estrangeiros parecem contaminados pela desumanização do marido que ultrajara o cadáver da mulher. Eles ainda estão contaminados pela longa temporada de inverno no alto da montanha ou são intrinsicamente insensíveis? Como o viúvo, que afirma que amava sua mulher, eles também se tornaram objetos que reificam as demais pessoas? São “bestas” ou “animais” (a depender da tradução) inumanos, como o estalajadeiro qualifica os camponeses daquela região?

A vida prossegue para além do conto, e persegui-la após o final do relato não é possível. Vemos os índices de morte entremeando a existência e índices de que a renovação constante é necessária. “– Não se deve fazer uma coisa durante muito tempo”, afirma o amigo do narrador. A primavera encerra o inverno, mas seu sol machuca do mesmo modo. Não podemos permitir que ele nos cegue: é necessário que nos renovemos sempre, interiorizando a primavera, revivescendo a cada dia, interiormente, como o sol que entra pela janela da estalagem e brilha nas garrafas à mesa; o interior da casa os protege das agruras da natureza bruta. No alto da montanha, John se lembrava do gosto da cerveja, que o narrador esquecera. No vale, na estalagem, leem cartas que chegaram, muitas cartas e jornais: a vida pulsa de todos os lados, convoca as personagens, é preciso vivê-la. Mesmo quando se ama “muito”, como o viúvo amava a mulher (é o que ele diz a uma pergunta do padre que cuidou do enterro – ele, entretanto, profanou seu cadáver, por estar na neve, no alto, durante o inverno, por muito tempo – mas o problema, ou a solução, não é a neve, o alto, a terra ou o vale, o inverno ou a primavera: o problema é a não renovação íntima constante, pois ela leva o homem ao endurecimento emocional, ao inverno de si mesmo, à própria morte – ainda que continue falando, andando, trabalhando.

No “Um idílio alpino”, tudo à superfície pode parecer trivial; no entanto, nas profundezas do iceberg, se colhem pérolas e pepitas de ouro, na forma de visão de mundo refinada, altamente elaborada na concepção narrativa e na dimensão linguística. De aparente sinal de reificação das personagens, as últimas falas do conto se tornam, no confronto com demais signos construídos pela narrativa, ode à vida revivificada – no iceberg, muitas vezes, o significado final é oposto à primeira impressão, ao sentido superficial e aparente. Vale sempre mergulhar no iceberg, ler e reler, para encontrar as linhas de força do conto e a cosmovisão autoral linguística e simbolicamente plasmada.

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Baker nos informa que críticos atilados contemporâneos de Hemingway consideravam o conto “O grande rio de dois corações” como uma história em que nada acontecera”, e à qual faltava “interesse humano”. Hemingway lhes respondeu que eram “críticos muito comuns” que não se deram ao “trabalho de descobrir o que ele tentara fazer”. Um deles concordou que “ler de novo o conto foi muito benéfico”, pois nele “havia muito mais do que lhe parecera à primeira leitura”. Baker comenta: “neste conto, como em toda a obra de Hemingway, algo ocorre abaixo da superfície”.

“O grande rio de dois corações” é um dos mais extensos contos com a personagem Nick Adams, alter-ego de Hemingway e protagonista de ao menos duas dezenas de narrativas que compõem uma espécie de romance de formação. O conto está dividido em duas partes: na primeira, Nick chega, no final da tarde, de trem, ao local em que pretende pescar; na segunda, na manhã seguinte, faz a primeira pescaria do que anuncia como uma série de dias pescando. A paisagem, descrita em notações rápidas, surge como um espaço calcinado, em que aos poucos a natureza viva ocupa o lugar de um mal-estar difuso que parece vir de lembranças não enunciadas, de uma má sensação antiga que não se esvai. No fecho da primeira parte, ao preparar um café e o lanche do final da tarde, se lembra de um amigo e da namorada desse amigo, e a memória indicia que a história desse amigo terminou mal.

Três diferentes traduções do conto indicam a riqueza da narrativa: em uma, de Hélio Pólvora, o título é “O Grande Rio de Dois Corações”, grafado como consta em Baker, cujo livro foi traduzido por Fernando de Castro Ferro; na tradução de Pólvora, temos uma única narrativa em duas partes. Na tradução de A. Veiga Fialho, o título é “O Grande e Generoso Rio”, constando desde o sumário como textos separados em “Parte I” e Parte II”. A tradução de José J. Veiga também indica desde o sumário as duas partes: “A Alma dos Rios: Parte I” e “A Alma dos Rios: Parte II”. Em Fialho e Veiga, sob o nome comum, apesar do entrecho sequencial, temos, pois, indicação de que são duas narrativas autônomas. A partir do núcleo comum substantivo “Rio”, há diferentes adjetivos e complementos: “Grande”, “Dois Corações”, “Grande e Generoso”, “Alma”. Já por essa lista é possível deduzir que o rio se constitui como símbolo, com significado metafórico para além do sentido estrito de curso de água que corre em direção ao oceano.

A segunda parte do conto – pois parece mais adequado estruturalmente o considerarmos um único conto em duas partes, complementares por espelhamento e negação – tem início na manhã do dia seguinte. Nick acorda com o sol já alto, mas não tão forte que já tenha feito evaporar o orvalho, prepara o café, recolhe gafanhotos para isca, arruma o acampamento e, em seguida, desce para o rio. A pescaria é detalhada – e assim, sob o signo da concretude naturalista, nos rituais da pesca, as linhas de força que constroem significados são aprofundadas no iceberg. A água do rio, a vivacidade da truta, o cuidado de Nick com os peixes; antes disso, a preparação do café, a fritura das panquecas, o embrulhar dos lanches que levará para a pescaria, a arrumação do acampamento.

Após pescar diversas trutas, tendo liberado uma pequena, perdido a maior, que rompeu a linha, e guardado no saco as grandes, Nick as limpa, deixa as tripas para as doninhas, lava os peixes abertos no rio e volta para o acampamento. Caminha para cima, pelo campo, vendo o rio correr entre as árvores, e o conto termina em discurso indireto livre, com o narrador informando o pensamento, o sentimento de Nick naquele momento: “dispunha de muitos dias para pescar no brejo” (em uma das traduções, “no pântano”).

Apesar do cenário idílico, em meio à natureza, não temos uma narrativa modelar, de exemplaridade moral; o entrecho está firmemente calcado na história, no momento presente, industrial, de destruição da natureza, de amálgama entre o espaço humanizado, arruinado, e o espaço edênico original. Nick se vale das conquistas civilizatórias no mesmo passo em que se integra de modo harmônico à natureza. Seu mal-estar é marcado por índices urbanos, decorre das aflições sociais, do relacionamento com os amigos, da cidade destruída, abandonada, do campo queimado nas proximidades da linha férrea; sente-se bem na floresta, na clareira rodeada de árvores, na visão do rio e do brejo (ou pântano), ao preparar, solitário, suas refeições, e ao pescar, cuidando da natureza na qual se refaz dos traumas do passado.

Creio que os índices anotados dispensam evidenciar que o conto não é uma história vazia e trivial de um jovem homem que sai para pescar, mas antes o detalhado e minudente rol de escolhas que definem uma cosmovisão, uma mundividência completa, crítica, ética e estética do que deve ser um homem e do que a sociedade que o rodeia não deve ser.

Eis – pleno, em toda potência, beleza e grandeza do seu movimento – o iceberg.

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Tentemos tornar o que foi exposto em um conceito aplicável, capaz de nortear a escrita, possibilitar a análise, desenvolver novos modos de criar significados em narrativas que pareçam recortes banais de vidas triviais. A arte do ficcionista e do poeta é cifrar os significados em textos nos quais, à primeira vista, só há a vida fluindo em sua imensa insignificância.

O que se pode dizer aqui, a partir das definições anteriores, é que o iceberg é construído pela cristalização de símbolos definidos pela retomada de palavras do mesmo campo semântico (às vezes com a repetição das mesmas palavras), gerando novos significados que verticalizam a compreensão da realidade referenciada.

Em miúdos, o iceberg, em literatura, e na lição de Hemingway, é construir e gerar sentidos a partir de cuidadosa seleção lexical, ordenação das palavras e sequências narrativas que criam uma arquitetura cuja aparência de lógica referencial esconde o universo humano e histórico que subjaz – como visão do mundo por parte do autor – nas profundidades do texto.

Para dizer de outro modo, o iceberg de Hemingway é como uma sucessão quase invisível de epifanias joyceanas – ou semi-epifanias, hemingwayanas – sutilmente pinceladas ao longo do texto. Veremos a epifania proposta por James Joyce em uma próxima aula do Curso.

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É de todo conveniente apresentar, graficamente, em desenhos, como o iceberg literário é construído – eis a proposta de atividade que fica desta aula: faça uma sequência de ilustrações que mostre, passo a passo, a construção teórica da proposta de escrita literária elaborada e realizada por Hemingway – e incorpore desde já tal técnica ao seu modo de pensar a literatura, na construção de novas narrativas e de novos poemas.

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         Quer dialogar?

Escreva-me pelo e-mail < rauer.rodrigues@ufms.br >.

Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia 

 

A ARTE DE ESCREVER:

Informação importante: O Prof. Rauer ministrou, no primeiro semestre de 2020 e em semestre anterior, há alguns anos, na pós-graduação de Letras / Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, um Curso de Escrita Criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados pelo professor, vem sendo publicados no Blog da Editora Pangeia nos últimos meses e continuarão a ser publicados, sempre na última sexta-feira de cada mês. Além dos textos que então utilizou no curso, o professor vem incluindo outros, ampliando o escopo do curso para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar. (Rizio Macedo, Editor, Editora Pangeia).

 

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