Publicado em 2024, no dia 13 de outubro, Dia Mundial do Escritor.
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Procuro os fundamentos da necessidade da escrita de la homa.
Explico: refiro-me, com la homa, ao ser humano (la homa é ser humano em Esperanto), ao primata homo sapiens sem distinção de gêneros, de culturas; refiro-me a la homa de todos os fenótipos e de quaisquer genes, de qualquer latitude ou longitude, de qualquer tempo ou espaço, considerando inclusive outros hominídeos.
O artigo la, em Esperanto, é simultaneamente o nosso a e o nosso o, em Português. Assim, o utilizamos aqui por, digamos, ser tal artigo, de algum modo, neutro – o que significa que talvez seja mais inclusivo, significando o(a) humano, por assim dizer, de modo mais integral.
Me pergunto:
- por que la homa escreve poesia?,
- por que se põe a narrar?,
- por que elabora ficções?
Amplio as indagações:
* Por que la homa “escreve”, de início ao modo oral, dirigindo-se ao seu grupo, e, após a invenção da escrita, em leituras públicas ou laborando na solidão de um espaço íntimo, muitas vezes somente para si mesmo?
** A psicologia contemporânea de la homa, na instantaneidade das redes sociais, é a mesma do ou da escriba de sinais rupestres nas cavernas e nas escarpas?
*** La homa dos pergaminhos, com seu cálamo, teria o mesmo ímpeto íntimo de la homa com uma pena, um lápis de grafite ou uma esferográfica dos séculos XVIII, XIX ou XX?
Consideremos, para as reflexões que seguem, que sim: la homa é, hoje, essencialmente, o mesmo la homa que desceu das árvores, protegeu-se nas cavernas, vagou por savanas, desertos e florestas ocupando os diversos continentes, que miscigenou com outros hominídeos e os extinguiu, que, de modo gregário ou desbravando o incógnito, criou civilizações e moldou culturas díspares, antagônicas, complementares.
Há motivos consistentes para a resposta “sim”, embora também haja bons motivos para um rotundo e definitivo “não”. Em particular, definições universais parecem sempre conter, em si mesmas, a sua própria negação. Ponderemos que nosso sim tem tal dialética e que tal opção tem, aqui, uma função argumentativa, pedagógica, uma escolha definida a partir, digamos, do “sucesso” de la homa na hierarquia dos seres vivos que povoam o planeta.
Temos uma nova indagação:
Qual, em essência, o motivo primeiro, a causa primeira, a escolha matriz que fez la homa dominar a natureza, sobreviver a si mesmo sempre em guerra com o mundo e com os seus semelhantes?
A busca parece indicar que isso se deu devido a “solidariedade” “grupal”, uma espécie de “sororidade” do “clã”, de “autodefesa” “tribal” e em decorrência dos “laços” internos das “famílias” –– grafo cuidadosamente entre aspas diversas palavras, pois elas, a cada tempo e a cada lugar, significam coisas diversas do que significam em nossos dias.
No entanto, valem, hic et nunc e em qualquer tempo e lugar por atos dadivosos, de partilha, de mutualidade e de congraçamento. Os instintos de perpetuação (da espécie) e de sobrevivência (física) geram sentimentos (afetos e medos) que se transformam em atos de generosidade.
Em linguagem freudiana, diríamos que os “instintos da vida” prevalecem sobre os “instintos da morte”, que a pulsão por viver, por sobreviver, por ter continuidade, a sanidade, supera a pulsão de morte, o ímpeto nocivo, guerreiro, destruidor, a malevolidade.
O elo fundamental é a generosidade. Sem tal índole, bebês não sobreviveriam, os laços interpessoais se romperiam, a confiança recíproca entre grupos diferenciados não existiria, inexistiria proteção comum, a solidariedade seria extirpada do convívio de la homa. Psiquês atormentadas e malévolas se imporiam, como de fato às vezes se impõem em instituições ou mesmo países; no entanto, no curso natural e costumeiro, seja em atos jurídicos punitivos seja no juízo mais longo da história, prevalecem a vida, a razoabilidade e os laços de humanidade.
Parece claro que o motor íntimo e social da generosidade tem ao menos dois aspectos, um egóico e outro relacional. O egóico é que, em condições normais, o ato de ser generoso traz de retorno, a cada la homa, a coesão grupal e a proteção social. O relacional nasce, promove e retorna, a cada um, o sentimento aglutinador e de maior satisfação íntima que existe, o amor.
O amor é, portanto, a base.
Quando tal sentimento deixa de existir na perspectiva de determinado grupo, tal grupo se auto extingue ou extermina a sociedade na qual se encontra, ou ao menos a cultura ali forjada.
Vemos la homa no início de sua existência. Ele se encontra, há alguns milênios, reunido em torno da fogueira ancestral em local e tempo imemorial.
Uma nova questão se apresenta:
Qual a forma de amor que aí se exercita?
- A transmissão técnica de conhecimentos e a transmissão lúdica de vivências é uma forma de amor.
- A oralidade da primeira poesia é uma forma de amor.
- A escrita de poemas é uma forma de amor.
- A escrita de narrativas é uma forma de amor.
- A escrita de acontecimentos históricos é uma forma de amor.
- A escrita de crônicas e de mitos são formas de amor.
- O diálogo filosófico, a pesquisa universitária, a escrita de estudos acadêmicos são formas de amor.
- Escrever é, essencialmente, na aurora de la homa, um ato de amor.
- A transmissão de experiências vitais no convívio social é um ato de amor.
- A exposição subjetiva, simbólica, de uma cosmovisão –– é um ato de amor.
Pode também ser, eis a dialética original aí se presentificando, um ato egóico, modulado por pulsão de morte, constituindo-se no momento de gestação em ato de desamor, em explosão desatinada que visa destruir.
Mesmo assim, a cosmovisão aí instaurada pode ser instrutiva: tudo o que forja conhecimento para a existência terrestre de la homa pode ser transformado, em um segundo momento, em ato vital de amor.
Que tipo de amor é esse que é vital na ordem da vida de la homa?
Há uma profusão filosófica e psicanalítica a nomear o que é o mais característico do ser humano, de la homa. Trata-se da inteligência, do sapiens que define e nomeia o homo: a sua capacidade de projetar no futuro as lições do passado, de acumular informações, a sua capacidade de racionalmente, com o logos se alheando do pathos, dominar a natureza.
Depois… o conceito sapiens se multiplicou! Temos hoje umas tantas variantes listadas nos livros e em fóruns na internet. Tomemos uma dessas listas para exemplificar:
- “Inteligência existencial (filosofia, pensamento profundo, significado da vida, expiritualidade, autoanálise);
- Inteligência naturalista (natureza, animais, agricultura, ecologia, observação);
- Inteligência musical (melodias, ritmos, instrumentos, composição, percepção sonora);
- Inteligência intrapessoal (autoconsciência, emoções, motivação, autorreflexão, crescimento pessoal);
- Inteligência espacial (visualização, arquitetura, design, orientação espacial, pensamento imagético);
- Inteligência interpessoal (comunicação, habilidades sociais, empatia, trabalho em equipe, interação);
- Inteligência corporal-cinestésica (coordenação, esportes, dança, artesanato, atividade física).”
Retirei a descrição acima de uma postagem do perfil @cerebrum_iq no Instagram. Em outra publicação, igualmente patrocinada, o mesmo perfil apresenta, sob o título “Quão Raro é o Seu Tipo de Inteligência”, os seguintes tópicos:
- Linguística – Fluência verbal; Jogo de palavras; Comunicação; Expressão poética; Contação de histórias.
- Lógica – Pensamento crítico; Resolução de problemas; Raciocínio analítico; Estratégia; Aptidão matemática.
- Naturalista – Conexão com a natureza; Identificação de padrões; Compreensão de ecossistemas; Observador da natureza; Habilidades de jardinagem.
- Visual – Visualização conceitual; Criatividade artística; Memória fotográfica; Raciocínio espacial; Percepção imaginativa.
- Existencial – Contemplação filosófica; O sentido da vida; Busca de propósito; Exploração espiritual; Introspecção profunda.
Percebemos que o mesmo item apresenta variação e importa destacar que o objetivo das publicações é chamar o leitor para fazer um teste de QI. No caso, melhor nos voltarmos para um estudo acadêmico. Nesse sentido, elejo a proposta de Daniel Goleman que consta no título de seu famoso livro:
- Inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente (autoconsciência, gerenciamento de emoções destrutivas, empatia, interação positiva em grupos).
O que essas “inteligências” não registram é a matriz que faz de la homa o que nomeamos de humanidade: a ainda não descrita nem detalhada inteligência amorosa:
- Inteligência amorosa – a inteligência que nasce da generosidade e retroalimenta a solidariedade (trata-se do elo que liga todos a todos; é a capacidade de colocar o coletivo e não uma parte do coletivo no centro do grupo; é o amálgama entre todos os seres; é o panteísmo com a natureza; é a vida vivida de tal modo que a pulsão de morte seja no máximo autodefesa diante de agressões sofridas, porque mantidos os instintos de perpetuação e subsistência, de sobrevivência física e de pleno equilíbrio emocional).
Se a inteligência do amor vem da generosidade, é o princípio da generosidade em exercício permanente e os atos de recíproca solidariedade que constroem a inteligência amorosa.
O escritor é, nesse sentido, um ser de generosidade e de amor?
Em paradoxo, provavelmente, não; naquela dialética que mencionamos inicialmente, na maior parte das vezes, não; mas essa é uma outra discussão.
Já o poema, o conto, a novela, o romance, as múltiplas formas, gêneros e subgêneros, acadêmicos e de estéticas literárias, são “objetos” que podem se tornar portadores de generosidade e de inteligência amorosa no encontro com o leitor, na perspectiva de que pode ser uma fagulha que forja novas experiências, novas sensibilidades, novos conhecimentos.
Na escrita literária, se a inteligência amorosa lateja no ato de escrever desde a concepção, ilumina a criação, instrui o artesanato da escrita, racionaliza as dezenas, centenas ou milhares de revisões autorais, e tem uma inteligência amorosa que recebe a leitura, que colhe a cosmovisão, que forja renascidas experiências e vivências, temos a literatura se constituindo como fonte de humanização insuperável, que transforma cada la homa em humanidade plena. Daí a importância fundamental da leitura literária na escola, na formação de crianças e de jovens.
Mas a principal lição que aqui fica é: se na condição de autores nos faltar a inteligência amorosa ampla, humana, no mais alto grau, no domínio pleno das mais altas exigências da linguagem e do conhecimento, a literatura restará inexistente, semimorta já em seu nascedouro.
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Rauer Ribeiro Rodrigues
Escritor; Professor; Editor; Em Travessia.
A ARTE DE ESCREVER
Informação importante:
O Prof. Rauer – hoje aposentado – ministrou, em diversos semestres, de 2006 a 2023, em PPGs e na graduação da UFMS, em particular no PPG-Letras Mestrado e Doutorado em Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas, a disciplina Oficinas de Escrita Criativa, às vezes sob outros títulos;
a pedido da Pangeia Editorial, alguns dos textos que serviram de diretrizes para as aulas, aqui comentados e ampliados, vem sendo publicados no Blog da Pangeia.
Além dos textos que então utilizou, inclusive alguns com os quais trabalhou na graduação, e acolhendo contribuições dos alunos, o professor vem incluindo outros, escritos especificamente para o Blog da Pangeia, ampliando o escopo das aulas para um público além dos estudantes universitários.
O Prof. Rauer é hoje Editor da Pangeia.
Leia todas as “aulas”!!!
Vale a pena acompanhar!!!
Rízio Macedo
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AULAS ANTERIORES DA SÉRIE A ARTE DE ESCREVER:
(Clique nas palavras com link para ir para a aula)
Apresentação – Como publicar seu livro
Aula 1 – Oito lições de Isaac Babel
Aula 2 – Segredos da ficção, por Raimundo Carrero
Aula 3 – Palahniuk: evite verbos de pensamento e outras dicas
Aula 4 – Quinze escritoras e as minúcias da Arte de Escrever
Aula 5 – 29 aforismos sobre o microconto
Aula 6 – Para escrever para crianças e jovens
Aula 7 – Síntese e concisão na escrita do haikai
Aula 8 – 33 dicas de escrita de Hemingway
Aula 9 – Técnica e engenho na escrita para tevê e cinema
Aula 10 – A arte de escrever na visão de Franz Kafka
Aula 11 – Ferramentas e dicas de Stephen King
Aula 12 – A concisão do infinito, com antologia de microcontos
Aula 13 – As lições de Camus, autor de “A peste”
Aula 14 – Vamos reinventar o soneto?
Aula 15 – Defina sua “profissão de fé” no ato de escrever
Aula 16 – Ernest Hemingway: um mergulho na “Teoria do Iceberg”
Aula 17 – A ética e a estética do Vampiro
Aula 18 – A metalinguagem
Aula 19 – Uma metodologia da leitura
Aula 20 – Microconto: cacos, estilhaços e fótons
Aula 21 – Haikai, Tanka, Renga, Senryu
Aula 22 – Do conto ao nanoconto
Aula 23 – Hokku, Haikai, Haicai, Hai-kai – a nomenclatura é um Senryu
Aula 24 – Os haicais sequenciais de José Lira e a proposta dos haikais encadeados
Aula 25 – Inteligência amorosa e escrita literária
A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.
https://editorapangeia.com.br/blog/
José Hilton Rosa
outubro 13, 2024 - 5:12 pm ·Gostei do Blog e divulgação da editora !
Pangeia Editorial Ltda.
outubro 13, 2024 - 9:07 pm ·José Hilton Rosa,
Muito Obrigado!
Abraço grande de toda a nossa equipe.
Rauer
Dionysius – Pangeia – Saruê