A ARTE DE ESCREVER 24 – OS HAICAIS SEQUENCIAIS DE JOSÉ LIRA E A PROPOSTA DOS HAIKAIS ENCADEADOS

No A ARTE DE ESCREVER 14, de 26 de junho de 2020, eu propunha, em forma de pergunta: “Vamos reinventar o soneto?”, a partir da seguinte consideração:

Tratamos hoje da forma canônica soneto, que há oitocentos anos está entre as mais utilizadas pelos poetas. Nosso desafio é compreendê-la e apreendê-la para reinventá-la.

Para a fórma e a fôrma do haikai, cujas raízes temporais também se aproximam do milênio, nosso espaço de reinvenção parece mais estrito, mas ainda assim cada haijin o reinventa a cada novo poema, em diálogo com a tradição. Vamos apresentar, nessa aula, duas propostas de inovação a partir do haikai.

Já ao ser incorporado à literatura brasileira, entre as primeiras reflexões sobre o gênero, Guilherme de Almeida propôs um esquema de rimas de relativa complexidade em a / b … b / a, com o primeiro e o terceiro versos rimando entre si e com uma rima interna no segundo verso (a segunda sílaba rimando com a sétima sílaba). Ademais, acrescentou título a cada poema, o que nunca houve (que seja do meu conhecimento) no universo sino-nipônico.

Eis dois exemplos “guilherminos”:

INFÂNCIA
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se “Agora”.

O HAICAI
Lava, escorre, agita
a areia. E enfim, na batéia,
fica uma pepita.

O título é uma “invenção” que limita e empobrece e o esquema de rimas instaura uma camisa de força (o ritmo e a harmonia sonora em japonês não se estabelecem com rimas). O esquema com versos de 5 / 7 / 5 emula os 17 sons do padrão nipônico clássico. No entanto, a pontuação, os enjambements, as maiúsculas, as rimas, criam aporias para a fluidez e simplicidade que são naturais e congeniais ao haikai.

O consenso da contagem silábica ao modo padrão da língua portuguesa em 5 / 7 / 5 sílabas correspondendo aos 5 / 7 / 5 “sons” da língua japonesa não se estabelecem propriamente sobre elementos linguísticos equivalentes. José Lira, envolvido com o haikai das mais diversas formas (poeta, crítico, estudioso e tradutor), propõe o esquema com 4 / 6 / 4 sílabas, considerando-a mais próxima dos sons do haikai nipônico. Aliás, ele utiliza a forma haicai, e assim está no VOLP – Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras. Prefiro haikai, mas essa é uma discussão para outro momento.

Para tratar da contagem de sons e sílabas, vejamos o haicai mais famoso de todos os tempos:

furu ike ya
kawazu tobikomu
mizu no oto

Bashô, 1681-82, primavera

Tradução literal:
lagoa antiga / sapo pulando / som da água

O velho tanque –
Uma rã mergulha,
barulho de água

(Bashô, em tradução de
Paulo Franchetti)

É o poema de nº 152 no livro Bashô – The Complete Haiku (1ª ed., 2008), de Jane Reichhold, e o poema nº 136 de O eremita viajante [haikus – obra completa], a tradução de Joaquim M. Palma publicada em 2016 por Assírio & Alvim em Portugal.

Os versos se distribuem na vertical, com quatro ideogramas no primeiro, quatro no segundo e três no terceiro. Mas o que importa são os sons – e os ideogramas não são fonéticos, representam “ideias”. Antes da tradução para o português, está a transliteração dos ideogramas em romaji (alfabeto latino). E aí vemos claramente os versos com 5 / 7 / 5 sons (ou “mora”).

A escolha lexical de Bashô, segundo relatos, se dá por critério da simplicidade e do verdadeiro. O ritmo é ternário (no primeiro verso; em cada palavra do segundo verso; no terceiro verso), com paralelismo entre os dois versos de cinco sons e até entre as duas palavras do septissílabo, uma com três sons e a outra com quatro sons. Não há rimas nem aliterações nem assonâncias; há um som marcante, o “u” tônico em quatro das oito palavras do poema.

Temos duas “frases: o primeiro verso é uma frase nominal, com o “ya” marcando um kireji, ou corte. Em português, utilizamos quase sempre um travessão no final do verso para determinar a suspensão lógico-semântica do kireji. A segunda frase se apresenta em dois segmentos, marcados na tradução por vírgula – e justapõe o mergulho (ou o salto) da rã (do sapo) com o som da água.

O velho tanque indicia o eterno, o permanente, o atávico, a ancestralidade, que se contrapõem ao efêmero, ao passageiro, ao transitório, ao que perece, que é o animal que salta – para em seguida desaparecer no mergulho. Há a transição sensorial do visual (o tanque) para o auditivo, o rumor da rã na grama, no salto e no mergulho.

Se os sons da versão em romaji formam 5 / 7 / 5, os ideogramas são 4 / 4 / 3; por outro lado, o “ya” é um som sem peso semântico verbal, sendo antes um sinal, um “mora” de pausa, de suspensão. É possível, pois, concordar com José Lira, de que o haikai deve ser, em língua portuguesa, vazado em 4 / 6 / 4 – e não seria despropositado fazê-lo eventualmente em 3 / 5 / 3, embora seja por completo sem propósito imaginá-lo, sem inteiramente o descaracterizar, em 6 / 8 / 6.

Dito isso, a forma que mais corriqueira, em 5 / 7 / 5, parece ser a que melhor se adaptou à nossa língua (não por acaso, as redondilhas constituem a base de nossa poesia de extração popular, muito embora sua utilização no haikai tenha outro ethos, bem diverso). Seja como for, tais variações aí ficam, e cada haijin de língua portuguesa que se valha daquela que for a mais expressiva para cada haikai que escrever, conhecendo e dominando os aparatos de escansão e de versificação.

O mesmo José Lira apresenta uma inovação do maior interesse, no seu livro Haicais sequenciais (2020). Iniciemos com sua definição de haikai (utilizarei essa forma, exceto em citações):

O haicai trata de sensações e não de emoções e tem regras rígidas e estritas de composição. É um gênero literário diferente – quase poesia e quase prosa – que se volta para a natureza e para o mundo em redor como um ato de percepção e não de reflexão. (Lira, 2020, última capa).

Na orelha, define-se que o “haiku” se compõe “de certos fragmentos textuais que brotam da experiência sensorial imediata e não da imaginação ou da fantasia” (Lira, 2020, 1ª. orelha).

A proposta de “haicai sequencial” é apresentada na “Introdução” do livro (anote-se: é um livro de poemas, a introdução ocupa somente quatro das suas 231 páginas). Os “haicais sequenciais” vêm a ser

Três haicais em série feitos todos no mesmo momento e com o mesmo tema, girando em torno de um mesmo termo de estação ou de um mesmo agente ou de uma ação contínua, ou seja, uma experiência sequencial transformada em três haicais. (Lira, 2020, p. 7).

Ao final do texto, após defender os princípios construtivos formais do “haicai”, José Lira afirma que “[o] que diferencia o haicai da poesia lírica é justamente a aversão à frenética busca de recursos estilísticos ‘inovadores’ para enfeitar o discurso” (Lira, 2020, p. 10). Por óbvio, sendo proposta estrutural, que se refere a colocar em sequência três haikais, os “haicais sequenciais” se constituem inovação (e Lira reconhece tal aspecto no primeiro parágrafo do texto) e inovação que deve ser celebrada.

Em livro de 2019, A paisagem lá fora: viagens haicaístas, aliás, José Lira já abordara o tema: no capítulo “Hoje outra vez”(p. 123) traz três “haicais” com o mote da “segunda-feira”; e no último capítulo (P. S., p. 191) completa-se o raciocínio com o argumento de que as sequências de três haicais “podem, ao mesmo tempo, ser vistos como textos distintos ou como estrofes componentes de um só poema, se assim se pode dizer, pois, em última análise ‘contam uma história’ quando lidos em conjunto”.

O livro Haicais sequenciais reúne, numeradas, 180 tríades, das quais as de número 96 a 100 são traduções de Bashô, Buson, Issa, Taigu Ryokan e Massaoka Shiki. Tomemos os três hokku de Bashô: o primeiro, kono michi ya / yuku hito nashi ni / aki no kure, poema de nº 1006 em Reichhold, é de 1694; o segundo, kareeda ni / karasu no tomari keri / aki no kure, poema nº 120,  é do outono de 1680; e o terceiro, shini mo senu / tabine no hate yo / aki no kure, poema nº 213, é do outono de 1984.

As datas nos mostram que, havendo algum ponto em comum entre os poemas (no caso, os kigo – a palavra identificadora da estação), a montagem da tríade sequencial pode ser depreendida ou montada a posteriori, sem prejuízo para o inovador conceito de José Lira.

Eis a página com os poemas de Bashô (Lira, 2020, p. 106):

Por nosso lado, eis nossa proposta de haikais encadeados:

Trata-se de construir, com uma sequência de haikais (sim, utilizamos no plural, ao modo da língua portuguesa), uma pequena narrativa, com enredo, ficcional ou biográfico, encimado por um título, a exemplo dos contos de fada, dos contos literários, dos poemas, líricos ou épicos; a fórma do haikai está a serviço da imaginação, da fantasia, do enredo, da ficção.

Eis um exemplo:

Haikais Encadeados
FÁBULA DA LUA CRESCENTE

三日月の寓話
Mikadzuki no gūwa

— Por que ri de mim?,
pergunta o homem à lua.
E o caco no céu

responde entre nuvens:
— És um cadáver adiado
que infausto procria.

O vil se amesquinha,
se incomoda, mas insiste:
— Por que ri de mim?

O riso no céu
se abre inda mais entre as nuvens
e sibila, insã:

— Levas, morro acima,
pedra que cai, sem descanso,
dia e noite sem fim.

As nimbus cinzentas
avançam rumo à lua;
e o homem retruca:

— Essa é minha sina,
meu acre, cruel destino, enfim,
meu ai, triste de mim!

Que ira!, a nuvem-chumbo
bloqueia o riso da lua,
as eras, as quedas —

a tempestade troveja,
desaba em rios e em cidades,
em homens e pedras.

haikais encadeados
(c) Rauer 2023

O mesmo poema em cards:

E aí, vamos inventar haikais?

Para publicar seus haikais, seus tankas, seus rengas, seus senryus, seus haibuns, confira a proposta que consta nas três primeiras publicações, fixadas no perfil no Instagram @haikai.brasil. Tendo dúvidas, escreva para

hb.haikai.brasil@gmail.com


Bashô

— o —

Quer dialogar?
Escreva-me:
rauer.rodrigues@ufms.br >.

Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia.

A ARTE DE ESCREVER

Informação importante:

O Prof. Rauer ministrou, em diversos semestres, de 2008 a 2023, no PPG-Letras Mestrado e Doutorado em Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, a disciplina Oficinas de Escrita Criativa;
a pedido da Pangeia Editorial, alguns dos textos que serviram de diretrizes para as aulas, aqui comentados e ampliados, vem sendo publicados no Blog da Pangeia;
o professor, eventualmente, acolhe e aqui publica estudos realizados por alunos do Curso.
Além dos textos que então utilizou, inclusive alguns com os quais trabalhou na graduação, o professor vem incluindo outros, escritos especificamente para o Blog da Pangeia, ampliando o escopo das aulas para um público além dos estudantes universitários.

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Joakin Sereno
Editor-Executivo
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Aula 1 – Oito lições de Isaac Babel

Aula 2 – Segredos da ficção, por Raimundo Carrero

Aula 3 – Palahniuk: evite verbos de pensamento e outras dicas

Aula 4 – Quinze escritoras e as minúcias da Arte de Escrever

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Aula 6 – Para escrever para crianças e jovens

Aula 7 – Síntese e concisão na escrita do haikai

Aula 8 – 33 dicas de escrita de Hemingway

Aula 9 – Técnica e engenho na escrita para tevê e cinema

Aula 10 – A arte de escrever na visão de Franz Kafka

Aula 11 – Ferramentas e dicas de Stephen King

Aula 12 – A concisão do infinito, com antologia de microcontos

Aula 13 – As lições de Camus, autor de “A peste”

Aula 14 – Vamos reinventar o soneto?

Aula 15 – Defina sua “profissão de fé” no ato de escrever

Aula 16 – Ernest Hemingway: um mergulho na “Teoria do Iceberg

Aula 17 – A ética e a estética do Vampiro

Aula 18 – A metalinguagem

Aula 19 – Uma metodologia da leitura

Aula 20 – Microconto: cacos, estilhaços e fótons

Aula 21 – Haikai, Tanka, Renga, Senryu

Aula 22 – Do conto ao nanoconto

Aula 23 – Hokku, Haikai, Haicai, Hai-kai – a nomenclatura é um Senryu

Aula 24 – Os haicais sequenciais de José Lira e a proposta dos haikais encadeados

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