Tratamos antes, de modo introdutório, ao tema do haikai, AQUI, e da microficção, cujos debates podem interessar aos cultores do haikai, AQUI, AQUI e AQUI. Voltamos ao haikai, com o objetivo antes de ampliar as informações, acrescentar alguns conceitos, e, em especial e com destaque, trazer ao debate o senryu, pequeno poema que se vale – com muita liberdade – da forma (ó) e da forma (ô) do haikai para tratar de temas mundanos.
O haikai, ou haicai, ou hokku, ou hai-cai, ou hai-kai, em algumas das diversas formas que a designação do poema tomou na sua aclimatação à língua portuguesa, é um poema com 17 sons, composto por uma estrofe de três versos, os versos sequencialmente com 5-7-5 sons. Em português, os sons do japonês, a língua original em que o haikai se desenvolveu, tornam-se 5-7-5 sílabas poéticas, contadas até a última sílaba tônica do verso. Embora alguns autores utilizem de variação nessa contagem (4-7-6, por exemplo), e mesmo Bashô – talvez o maior dos mestres do haikai – dizia apreciar de vez em quando a surpresa de um poema com 18 sons, melhor tratarmos o haikai no formato clássico, nomeando de poemas ou tercetos àquelas construções que se assemelham ao haikai, mas dispõem de modo livre que modifica a estrutura dos três versos de 5-7-5.
O haikai clássico solicita diversos princípios que vem sendo abrandados com sua vivência nos trópicos. O kigo, por exemplo, ou seja, a palavra que identifica a estação do ano a que cada haikai invoca, tem importância bastante relativa nos trópicos brasileiros, em que a invernada fica no verão, em que o veranico fica no inverno, em que não ocorre a sucessão das quatro estações bem delineadas do hemisfério Norte. Tenho uma sakurá aqui no jardim de minha casa. Não tem ainda um ano que a muda foi plantada, e ela floresceu no mês de abril (contei 32 flores, que nasceram rosa, cresceram branqueando, e murcharam levemente róseas). Os brotos vigorosos que surgem parecem anunciar nova florada.
aos pés de Kioto
sob a flor da sakurá
deixem minhas cinzas
Rauer
(inédito)
(Obs.: ao incluir neste artigo poemas de minha autoria, o faço apenas para indicar e exemplificar características do poema; não há no gesto nenhum juízo positivo ou benevolente aos poemas; tal avaliação, cabe ao leitor).
O haikai não pede nem exige rimas entre os versos ou internamente no poema (perdoa-me, Guilherme de Almeida); no entanto, há um princípio de eufonia, de sonoridades que se amalgamam de modo harmônico, que ressoam entre as palavras, de modo a que o constructo poético se torne um objeto íntegro do primeiro ao último som.
O conjunto, também, não deve receber título. O título constrange, modaliza, indicia, e a sensação visual colhida no poema diminui com a nomeação; no mesmo passo, o título inclui sons nos poemas que quebram a harmonia dos 17 sons – e, aqui, a coincidência dos sons em japonês corresponderem aos dois versos de cunho popular mais cultivados da lírica portuguesa, a redondilha menor e a redondilha maior, indicam que em nossa língua há um habitat perfeito para o haikai (observe-se que tal paralelo não é assim tão simples, mas passe a informação, que é generalizada e indica uma aproximação aceitável, ainda que não exata).
Por outro lado, os temas da lírica portuguesa de extração popular se ajustam melhor ao senryu (veremos tal detalhe mais à frente), e tais temas não são acolhidos com naturalidade no haikai, que se volta para a observação da natureza, para a descrição neutra, objetiva e sintética de um quadro imagético, sem que haja qualquer presença do eu-lírico, sem que haja qualquer indício de antropomorfização, sem que por ele se mova um eu-poético em trajetória existencial.
O haikai contempla um movimento que vai do transitório, do efêmero, do mutável, o ryuko, normalmente no primeiro verso, para o eterno, o imutável, a essência perene, o Kyo, que ocupa o verso central, e conclui, no terceiro verso, com uma unidade que amalgama, que coalesce, que cristaliza, que sintetiza – há algo de panteísta nesse movimento – o paradoxo entre o pequeno e próximo com o incomensurável e o cosmológico.
tombada à chuva
a malva-rosa da trilha
procura o sol
Bashô
(Adaptação minha, a partir de
outras traduções do poema)
A chuva se constitui em elemento transitório, fluido, que se modifica incessantemente na sua efemeridade; a malva permanece para além da chuva, mas, mais do que isso, se renova de modo permanente – é uma planta florífera que se propaga com facilidade e suas colônias não precisam ser replantadas, significando, pois, perenidade; o último verso, liga a planta – que se abateu com a chuva, e está ao chão – reerguendo-se na busca do sol, o elemento cosmológico, panteísta, de unidade.
Eis um exemplo contemporâneo:
nevoeiro em fuga
na mata úmida e fria
árvores vazias
Willia Katia Oliveira
do instagram @um_haicai_no_cafe
O esquema do haikai de Willia é similar ao esquema do haikai de Bashô; além do cenário diferente, há cosmovisões bem específicas, e divergentes, quase em oposição, pois em Bashô o universo é solar, com o homem integrado à natureza – já em Willia, o sentimento prevalecente é de desolação (fuga, fria, vazias), o que dialoga com o referente contemporâneo, de motosserras, de desmatamento vertiginoso, de cataclismas naturais decorrentes do aquecimento global. A observação zen, o satori, contempla a natureza em destruição e a descrição clara, evidente, sem juízo de valor, reverbera na visão “úmida e fria” de um mundo “vazias”, em que, mais que o nevoeiro, a vida humana está “em fuga”.
Já a forma(ó) tanka apresenta-se em duas estrofes: a primeira, similar ao haikai, e a segunda composta por dois versos de 7-7 sons; assim:
recolhe as armas,
descansa dores e penas:
morada de amores,
recanto da acolhida,
cidade dos samurais
Rauer
(inédito)
Duas observações nesse passo. O primeiro comentário e sobre a quebra com dois pontos no final do segundo verso, um corte que é muito característico do haikai, em que duas imagens se justapõe – não é uma relação lógica, do logos, é uma relação sensitiva, de apreensão do real. A segunda observação é sobre a utilização de letras maiúsculas, característica da poesia ocidental cuja prevalência sofreu apenas um leve arranhão nas vanguardas do século XX. No caso do haikai, nada deve chamar a atenção que não seja a imagem apreendida no poema e decalcada em um símile mental na leitura. Recomendo fortemente que não se use maiúsculas em haikai, talvez nem quando há substantivos próprios.
Se o haikai é a forma mais difundida atualmente, sua forma deriva do tanka, que por sua vez é um “recorte” do renga. O renga é uma sequência longa, que alterna diversas estrofes de três versos com estrofes de dois versos, no esquema de sons em 5-7-5 / 7-7. Em termos históricos, o renga nascia do encontro de poetas, que alternavam vozes, construindo cada um, alternadamente, suas sequências de 5 versos, em jogos que tendiam a longos saraus, de modo a demonstrarem sua proficiência em jogos de palavras e de sentidos.
Com o tempo, os poetas, individualmente, passaram a compor o tanka, e posteriormente, o haikai. Sendo poesia cortesã, de socialização, tendiam à sátira. Com o tempo, o haikai absorveu para si aspectos da filosofia zen, incorporou regras estritas de composição, enquanto o tanka tornou-se mais meditativo, com os dois versos finais configurando como que uma reflexão sobre elementos apresentados nos três primeiros versos. E aquela poesia mais brincalhona do início do renga, do tanka e do haikai passou a ser nomeada de senryu.
Eis alguns dos elementos que constituem o senryu:
- Prosaico
- Satírico
- Baixo-ventre
- Cotidiano comum
- Pessoas simples
- Linguagem coloquial
- Psicologia mundana
- Utiliza antropomorfização e metáforas
- Utiliza trocadilhos, paródia e humor
- Retrata infortúnios humanos
- Trata do que é propriamente humano e propriamente desumano no humano
- Não exige kigo, satori, ryuko, kyo, unidade ou espírito zen
- Pode conter ironia
- Embora adequado que siga, não exige rigor na contagem silábica
- Embora preferencial na forma do haikai, pode apresentar-se também em tanka
- Pode tratar de questões históricas, políticas, sociais, quase sempre de modo satírico, irônico, dessacralizador
- Em suma, é um poema mundano sobre questões mundanas e fraquezas humanas, tratadas ao menos com um leve sorriso por parte do eu-enunciador
Há proximidade conceitual na síntese e no flash do instantâneo entre as diversas formas mínimas; o microconto, por exemplo, por gozar de ampla liberdade de fatura, muito se aproveita da forma(ó) e mesmo da forma(ô) do haikai, e em especial das características do senryu. Sob o título de “Vênus”, eis um microconto que é um senryu e que, de certo modo, contempla o fluir do ryuko, o perene do kyo e a unidade solar final:
Amo a ébria jovem.
À morte, vivo boa sorte:
Belo sol me vem.
Rauer, brevíssimos,
2020, p. 298
No volume, minimus & brevíssimos, confira AQUI, há diversos outros microcontos que seguem a estrutura 5/7/5 claramente, como o texto acima, ou que seguem a estrutura, disfarçada em apresentação gráfica que “esconde” o jogo lúdico com o haikai, com o tanka, com o renga e com o senryu.
A Coleção Plaquete, das Edições Dionysius, o selo de literatura da Pangeia Editorial, tem um volume em lançamento que reúne Senryu produzidos nas Oficinas de Criação Literária de 2022 oferecidas no PPG-Letras Mestrado e Doutorado da UFMS. Baixe gratuitamente o volume, AQUI, e, AQUI, tenha mais informações sobre o processo criativo desenvolvido no curso.
Em uma aula futura, trataremos do corte que caracteriza o haikai (e eventualmente é o que o diferencia do senryu), das palavras de corte, o kireji, e de outros aspectos que ainda não abordamos. Aos novos cultores, e mesmo aos antigos, o lembrete permanente de que devemos buscar o haimi, ou seja, “o sabor do haiku” (a expressão é de Goga) – é para encontrar tal sabor que as regras servem; mas, antes de tudo, a leitura constante e o exercício diário é que faz o cultor se tornar capaz de definir e realizar tal “sabor”, seja no haikai, seja no tanka, seja no senryu.
Bibliografia
AKIKO, Yosano. Descabelados. Trad., introd. e notas Donatella Natili; Álvaro Faleiros. Brasília: EdUnB, 2007.
BASHÔ, Matsuo; BUSON, Yosa; ISSA, Kobayashi. O livro dos hai-kais. Trad. Olga Savary; prefácio Octavio Paz; il. Manabu Mabe. São Paulo: Massao Ohno; Roswitha Kempf, 1980.
BASHÔ, Matsuo. O eremita viajante [haikus – obra completa]. Trad. e org. Joaquim M. Palma. Porto: Assírio & Alvim, 2016.
BASHÔ, Matsuo. Trilha estreita ao confim. Trad. Kimi Takenaka; Alberto Marsicano. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 2021. [Com três artigos de Marsicano e uma Nota dos Tradutores].
FRANCHETTI, Paulo; DOI, Elza Taeko; DANTAS, Luiz. HAIKAI – Antologia e história. 3. ed. Campinas, SP: EdUnicamp, 1996.
FRANCHETTI, Paulo; DOI, Elza Taeko; DANTAS, Luiz. HAIKAI – Antologia e história. 4. ed. Campinas, SP: EdUnicamp, 2012. (Obs.: sem o posfácio “O haikai e o período de Edo (1615-1868), um estudo essencial para iniciantes, que consta na 3. edição, indicada acima, substituída por “O haikai no Brasil” e “Paulo Leminski e o haikai”).
GOGA, Hidekazu Masuda; ODA, Teruko Fujino. Natureza – Berço do Haicai: Kigologia e Antologia. São Paulo: Diário Nippak, 1996.
LIRA, José. A paisagem lá fora: viagens haicaístas. 2. ed. Recife: Crossing Borders, 2019.
LIRA, José. Haicais sequenciais. Recife: Crossing Borders, 2020.
LIRA, José. Kobayashi Issa: o haicaísta feliz. Recife: Crossing Borders, 2019.
POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: BARROSO, Ivo (org.). “O Corvo” e suas traduções. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000. p. 47-62.
RAUER [Rauer Ribeiro Rodrigues, professor ministrante]. Oficinas de Escrita Criativa, Curso, PPG-Letras / CPTL / UFMS, 2022
RAUER; OLIVEIRA, Willia Katia. Senryu – Oficina Literária. Campinas, SP: Dionysius, 2022. (Com 4 poemas de cada um dos seguintes autores: Catia Mendes Pereira, Deusemar Cardoso, Edilva Bandeira, Francisca Lusia, Ilka Meireles Santos, Karina Torres Machado, Malane Apolonio, Pollyana Lima, Rauer, Thony Marques e Willia Katia Oliveira).
RAUER. 29 aforismos sobre o microconto – A Arte de Escrever 5. Blog da Pangeia, 6 de agosto de 2019. Disponível em https://editorapangeia.com.br/a-arte-de-escrever-5-29-aforismos-sobre-o-microconto/, acesso em 16/04/2022.
RAUER. Vênus. RIBEIRO [Leite], Alciene; RAUER. minimus & brevíssimos. Uberlândia, MG: Pangeia, 2020. p. 298.
LINKS CONSULTADOS:
http://pt.artsentertainment.cc/livros/poesia/1009006619.html
http://www.kathleenlessa.prosaeverso.net/visualizar.php?idt=3747011
https://brasilescola.uol.com.br/literatura/haicai-um-poema-origem-japonesa.htm
https://emais.estadao.com.br/blogs/cronica-por-quilo/senryu-o-haicai-mundano/
https://en.wikipedia.org/wiki/Kireji
https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/poemas-poesias/o-que-haikai.htm
https://mundoeducacao.uol.com.br/literatura/haicai.htm
https://namakajiri.net/misc/metrica-haicai.pdf
https://nuhtaradahab.wordpress.com/2012/11/28/haicai-ou-haikai/
https://nuhtaradahab.wordpress.com/2013/09/21/o-que-e-haicai-parte-i/
https://pt.lightups.io/how-write-haiku-4-easy-steps
https://pt.wikipedia.org/wiki/Haiku
https://stringfixer.com/pt/Haiku
https://treinamento24.com/library/lecture/read/296599-o-que-significa-kireji
https://www.classicistranieri.com/wikipediaforschoolspt/wp/h/Haiku.htm
https://www.gringsmemorabilia.com.br/2019/08/haicai-tecnica-literaria-japonesa-da.html
https://www.kakinet.com/caqui/brasil6.htm
https://www.nippo.com.br/zashi/2.haicai.petalas/281.shtml
https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/literatura-japonesa/nas-pegadas-de-basho
https://www.recantodasletras.com.br/teoria-literaria-sobre-haikai/74900
https://www.todoestudo.com.br/literatura/haikai
https://www.youtube.com/watch?v=Fl1VY9eY6CA
— o —
Quer dialogar?
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Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia.
A ARTE DE ESCREVER
Informação importante: O Prof. Rauer ministrou, em diversos semestres desde 2008, no PPG-Letras Mestrado e Doutorado em Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, cursos de escrita criativa; a pedido da Editora, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados e ampliados pelo professor, vem sendo publicados no Blog da Pangeia; o professor também, eventualmente, acolhe e aqui publica textos dos seus alunos. Além dos textos que então utilizou nos cursos, inclusive alguns com os quais trabalhou na graduação, o professor vem incluindo outros, escritos especificamente para o blog, ampliando o escopo das aulas para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar!!!
Claudia Amoroso Bortolato
Editora-Executiva
Pangeia Editorial
AULAS ANTERIORES DA SÉRIE A ARTE DE ESCREVER:
(Clique nas palavras com link para ir para a aula)
Apresentação – Como publicar seu livro
Aula 1 – Oito lições de Isaac Babel
Aula 2 – Segredos da ficção, por Raimundo Carrero
Aula 3 – Palahniuk: evite verbos de pensamento e outras dicas
Aula 4 – Quinze escritoras e as minúcias da Arte de Escrever
Aula 5 – 29 aforismos sobre o microconto
Aula 6 – Para escrever para crianças e jovens
Aula 7 – Síntese e concisão na escrita do haikai
Aula 8 – 33 dicas de escrita de Hemingway
Aula 9 – Técnica e engenho na escrita para tevê e cinema
Aula 10 – A arte de escrever na visão de Franz Kafka
Aula 11 – Ferramentas e dicas de Stephen King
Aula 12 – A concisão do infinito, com antologia de microcontos
Aula 13 – As lições de Camus, autor de “A peste”
Aula 14 – Vamos reinventar o soneto?
Aula 15 – Defina sua “profissão de fé” no ato de escrever
Aula 16 – Ernest Hemingway: um mergulho na “Teoria do Iceberg”
Aula 17 – A ética e a estética do Vampiro
Aula 18 – A metalinguagem
Aula 19 – Uma metodologia da leitura
Aula 20 – Microconto: cacos, estilhaços e fótons
Aula 20 – Haikai, Tanka, Renga, Senryu
A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.
https://editorapangeia.com.br/blog/
EDITORA PANGEIA:
“O poeta Bashô conversando com viajantes sob a lua cheia” (1891), de Tsukioka Yoshitoshi
The Philadelphia Museum of Art/Art Resource/Scala, Florence
No destaque do artigo, e no alto do artigo, ilustração de haicais
japoneses em livro ilustrado por Yosa Buson em 1799.
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