A ARTE DE ESCREVER 22 – DO CONTO AO NANOCONTO

…, …, bóson, brevíssimo, conto curtíssimo, conto curto, conto ultracurto, contobreve, forma narrativa mínima, fóton, jaculatória, microartigo, microconto, microficção, microforma narrativa, micromínimus, micronarrativa, micrônica, microrrelato, microtexto, miniatura, miniconto, minicrônica, miniensaio, minificção, minimus, mininarrativa, ministória, nanoconto, pequeno conto, quark, twitterliteratura, twitterratura, etc., etc., etc., …, …

Nas inquietas reflexões deste texto, navegamos no estudo da terminologia, que tem sido tanto mais ampla quanto maior a imprecisão, no entorno das formas narrativas ficcionais mínimas.

1.

O conto, mas o que é o conto? Tudo o que o autor afirma que é conto, de fato é um conto? O conto é aquele conjunto de unidades de tempo e espaço com poucas personagens? O conto é uma narrativa de poucas páginas que é lido “de uma única sentada”? O conto é uma narrativa curta, sem um grande arco de abrangência referencial e inúmeras linhas de ação, como a novela?, ou o conto é aquele gênero literário sem a amplitude de representação do real construída no romance?

Convenhamos: não é nada disso. E até o que poderia ser parcialmente correto, do exposto, já foi derrogado na prática dos grandes contistas nos últimos 200 anos.

E o nanoconto, do âmbito das ministórias, da minificção, é o quê? O que é, ou o que pode ser um microconto? E o miniconto, o que é? É um novo tipo textual, é um conto ultracurto, é um conto curtíssimo? É um chiste, uma epifania, uma boutade, uma frase de efeito? Essas micronarrativas são narrativas?, constituem um novo gênero literário?, são um haikai sem poesia e sem exigências de métrica?

Convenhamos, pode até ser um pouquinho bem micro de tudo isso, mas nenhum desses aspectos define as formas narrativas ficcionais mínimas. Tanto que já estudamos tais microformas AQUI, AQUI e AQUI, e a elas voltamos uma vez mais.

Vamos tratar agora da morfologia do conto, da estrutura das formas narrativas curtas e do advento das formas narrativas curtíssimas, mínimas, de taxonomia ainda confusa. Há, no enfoque aqui trabalhado, uma perspectiva teórica e um fundo de prática de escrita tendo em vista a arte de escrever e as oficinas literárias que tratam do conto em geral e, especificamente, do microconto e das demais escritas mínimas. As definições e conceitos buscam, acima de tudo, produzir compreensão tendo em vista a escrita criativa.

Iniciemos por uma hipótese quanto à gênese histórica da narrativa.

2.

De que modo a narrativa surge no universo humano? 

Tendemos a considerar que o primeiro pressuposto é de que há alguém que narra, que se constitui como narrador ou que cria um narrador, que tal narrador ganha vida própria, por assim dizer, e que então a narrativa se faz.

Walter Benjamim, no estudo “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”,  distingue o narrador entre gregário e viajante. Deles, surgem dois tipos de narrativa, duas formas de conhecimento. Nas minhas palavras, e com desdobramentos que em parte não constam em Benjamim, desenvolvo – por minha conta e risco – tal perspectiva.

O primeiro modo de narrar é o do agricultor, que retira a sobrevivência, a subsistência e a perpetuação existencial e cultural do registro dos ciclos naturais, contados e recontados no clã, em torno da fogueira, para que as novas gerações sejam forjadas na capacidade e no entendimento das etapas do plantio e do pastoreio, e para que todos reforcem em si a cultura da comunidade.

O segundo tipo de narrador é o navegante, que conhece e domina as rotas, os sinais de bonança ou tempestade, o intercâmbio comercial, a comunicação com nativos de outras línguas, e que, também, narra suas aventuras, para que todos do clã, e em especial as novas gerações, saibam dos outros povos, de outras possibilidades existenciais, de novas técnicas e de outras visões de mundo.

Tal narrador arquetípico enuncia sua narrativa como conhecimento. A ficção, a poesia e a literatura derivam dessa fogueira de audiência cativada por um orador que domina instrumental retórico e expressividade corporal. A narrativa pode ser extensa e seguir por diversas noites, com aventuras encadeadas, ou ser curta, fechar-se na mesma sessão, antes do sono e dos sonhos.

Se a narrativa se encadeia em diversas noites em torno de uma personagem, de um mito, de uma saga, com um único núcleo, caminhamos para o romance.

Se a narrativa se desdobra desfiando diversas personagens, diversos atores, em diversas narrativas com começo meio e fim encadeadas uma na outra, temos o indício da novela com moldura.

Se a narrativa entrelaça diferentes núcleos, diferentes narradores, diversas narrativas em diversas noites sem que as personagens sejam constantes a cada sessão, temos esboço de novela.

Se a narrativa começa e termina ainda com a mesma lenha na fogueira, envolve um pathos único, um desdobrar de ações para um único clímax, temos um… bem, talvez seja a semente de conto, talvez seja o rascunho de uma crônica, talvez seja um episódio solto de uma biografia, talvez seja um caso, ou causo, ou uma historieta.

Se, em algum momento, se coloca ritmo e rimas e se acompanha a narrativa com um instrumento ou com alguma percussão, começa a surgir a forma da poesia, da lírica, do poema épico.

Se em algum momento ocorre a alguém na plateia sintetizar em menos de um minuto a narrativa, o episódio, o cantado ou o narrado, temos, voilà, o nascimento do… conto curtíssimo, ou do microconto, ou até do nanoconto.

Foram necessários alguns milênios para que, da fogueira primordial, o ser humano gerasse o primeiro texto propriamente literário, indo além das condicionantes do clã, indo além do bruxuleio das chamas, indo muito além do conhecimento primário que aquelas narrativas constituíam.

A literatura nasce quando o narrado pensa-se como narrativa, quando o poema pensa-se como poesia, quando o ato de enunciação se faz ato de reflexão sobre si mesmo. Não é só enunciação sobre a enunciação, é a construção da retórica sobre a retórica da enunciação. A literatura deixa de lado o primado do conhecimento imediato, e passa a mediar outro conhecimento, multidimensional, que deriva da estrutura intrínseca do modo com que representa e simboliza a subjetividade e o mundo.

Dito assim de modo abstruso, vamos à prática, simples e singular, do dia a dia do escritor diante da lauda em branco ou da tela vazia.

3.

Uma narrativa é uma sequência que constitui um enredo e que é constituída por esse enredo.

O enredo é uma sequência de fatos, de micro-acontecimentos, de ações que determinam reações. Sobre um estado inicial – digamos que congelado –, um ator, uma personagem, uma subjetividade, exerce uma ação, que pode ser um pensamento, um comentário, um gesto, uma intervenção, um ligeiro tremor de água. O estado inicial é modificado e um novo pensamento, um novo comentário, um novo gesto, uma nova intervenção ocorre. Tais ações podem ser do mesmo ator em cena, podem ser do narrador, podem ser de diferentes personagens, atores ou elementos da narrativa. Algo ocorre, ainda que mínimo, e algo decorre, ainda que mínimo, em desdobramento, em resposta, em re-ação, como pequenina nova onda do círculo concêntrico das águas antes imóveis no lago da existência.

Em um romance, são milhares desses micro-acontecimentos, envolvendo um núcleo único e constante; em uma novela, de qualquer tipo, são milhares desses micro-acontecimentos, envolvendo linhas narrativas em paralelo; para os autores a quem uma novela é o meio-termo entre conto e romance, são um pequeno milhar ou alguns poucos milhares de micro-acontecimentos; em um conto, temos algumas dezenas, algumas centenas, no máximo um milhar e pouco desses micro-acontecimentos.

Em um conto ultracurto, em um miniconto, em um microconto, em um nanoconto – enfim, em uma minificção, em uma forma narrativa mínima, qual o limite quantitativo máximo e mínimo para esses micro-acontecimentos?

4.

Chamemos a cada um desses micro-acontecimentos de nó dramático.

Claro está que nó dramático, aqui, não é a epitasis de Aristóteles, aquela condensação de conflitos após um desenvolvimento de ações que se resolve tendo ao fim uma catarse. Ou, nos termos de estudos contemporâneos, não é a tendência à univocidade de ação, espaço e tempo, sendo o momento em que um enigma é desvelado. 

Nó dramático aqui é cada movimento de ação, por mínimo que seja, em uma narrativa. 

Um texto, qualquer texto, até por etimologia, é uma trama, uma rede, uma teia, uma tela, um entrelaçamento de informações linguísticas. O nó dramático é constituído nos encontros de dois fios da tecitura que o texto tece. A arte do escritor é fazer com perfeição cada encontro dos fios do tecido, para que o bordado do texto fique sem falhas e sem nódulos, sem “tropicões” textuais aos olhos na leitura.

Em um diálogo, cada turno de fala tende a ser, no mínimo, um nó dramático. Uma fala alongada, provavelmente, contém diversos nós dramáticos, pois a cada período, ou a cada frase, há uma luz nova sobre as personagens em cena, ou sobre objetos em cena, ou sobre conceitos em discussão. Uma única frase pode conter diversos nós dramáticos, com os termos se modificando ou acrescentando significados entre si. A narrativa se faz sob o primado da ação, sob o primado do enredo enredado, das ações articuladas na tecitura, com os nós e os “vazios” constituindo signos, gerando significados, texto e discurso.

O nó dramático é, pois, o movimento narrativo, é o criador do efeito de narrativa, é a figura textual que engendra a narratividade. Aí está a diferença entre a ficção e a lírica: na lírica, há descrição de um estado, do momento estático de uma subjetividade, de um pathos que se prolonga, enquanto na narrativa o estado se modifica, o momento se agita, a subjetividade se move, as emoções transmudam. Claro está que um poema narrativo, ou uma narrativa lírica, tem narratividade, enreda um enredo e normalmente o desenreda no entrechoque lírico de subjetividades.

O móvel do romance e da novela está nas ações ininterruptas vivenciadas no papel por atores e personagens, por objetos e cenário, no tempo cronológico e na subjetividade dos sujeitos em cena – e, assim sendo, fica fácil perceber que os gêneros ficcionais de larga extensão constituem uma miríade de nós dramáticos.

Estudar uma narrativa em close reading – estratégia metodológica das mais produtivas quanto às microfilmes – é descrever as minúcias desse movimento, é desvendar os significados de cada nó da tecitura.

Estudar uma narrativa de forma mínima é descrever e compreender o movimento constituído na sucessão de nós da tecitura e, ainda, o significado das elipses, das alusões, dos intertextos carnavalizados, canibalizados e minimamente aludidos, textualizados por temas ou signos constituídos a partir de “vazios” textuais e narrativos. 

5.

Examinemos, pois, um conto mínimo na perspectiva aqui sistematizada, com o objetivo de vislumbrar limites que nos permitam tecer uma classificação, elaborar uma taxonomia.

onde estará o pai?

as oito sacolas biodegradáveis escorregavam da cautela apressada e a mulher insistia, imponente, nos passos até a porta, o menino no encalço, pois só assim podia ser: escoltar a mãe e, às vezes, obedecer – ela estacou defronte à fechadura, transferiu as compras do braço direito para o esquerdo e procurou a chave – eles só pretendiam entrar – recuou a imaginação até o carro, estacionado na rua, imaginou as janelas abertas, a afobação do motor, a brutalidade do vento nos cabelos e experimentou, primeiro o rigor do couro, depois o calafrio do metal, para, repentinamente, pousar uma serenidade naquela avidez – precisava esperar, qualquer coisa aconteceria a partir dali, algo brando, porém abrupto.

Whisner Fraga
Usufruto de  demônios
Campinas, SP: Ofícios Terrestres, 2022, p. 50

A cena de abertura é de que as sacolas, logo sabemos que carregadas por uma mulher, “escorregavam”; modalizadas em seu conteúdo semântico, são sacolas “biodegradáveis”; e a mulher, “imponente”, em “cautela apressada”, chega “até a porta”. Em uma linha e meia, no mínimo cinco nós dramáticos, talvez seis, se apresentam, e então o narrador focaliza “o menino no encalço”, garantindo que não poderia ser diferente o papel da criança que não fosse “escoltar” e “às vezes, obedecer”. Em uma linha, pelo menos mais três ou quatro, talvez cinco nós dramáticos. 

Do foco na mãe e do foco na criança ressalta o procedimento narrativo da ambiguidade construída por oposição, em “cautela apressada”, ou por indução de dúvida, em “às vezes”. 

A mulher estaca, transfere, procura – e o narrador intervém, informando, em focalização conjunta, que “eles só queriam entrar”; tal intrusão do narrador, que parece redundante, embora não seja, tem ao menos mais dois papeis no entrecho: banalizar a aflição instaurada na psiquê da personagem, ao mesmo tempo com que contamina o leitor com tal aflição, no mesmo passo em que faz a passagem da ação para um mergulho, em discurso indireto livre, nos pensamentos da mulher. Em mais duas linhas e meia, ao menos mais quatro nós dramáticos, talvez cinco. 

A mulher “recua a imaginação até o carro”, “estacionado na rua”, imagina janelas, motor, vento, couro, metal. A sucessão em cinestesia, modalizada e modificada por adjetivos ou por pares de substantivos, gera ao menos mais onze nós dramáticos, novamente em duas linhas e meia. Essa sucessão de movimentos se encerra com um verbo que indicia tranquilidade, ainda que repentina e inesperada, indício confirmado na palavra serenidade, a que se segue uma modificação temporal que funciona como anáfora de tudo o que veio antes; esse movimento está textualmente posto na sequência, de modo que a ordem do texto, nessa passagem inversa à da cronologia, leva o drama ao momento imediatamente anterior ao de fechar a narrativa: “pousar uma serenidade naquela avidez” – e assim, em cerca de uma linha, ao menos mais quatro nós dramáticos: repentinamente, pouso, serenidade, avidez. 

Além disso, essa passagem patemiza o texto com a configuração da tranquilidade, de que tudo afinal está bem, sem problemas, para então fazer no fecho da narrativa uma abertura para o inesperado, o dramático, o impiedoso destino, que no entanto fica para além do que a narrativa explicita, textualiza, teatraliza.

Vejamos a concentração de sentidos obtida na tecitura de nós dramáticos no fecho dessa narrativa de Whisner Fraga: “precisava esperar, qualquer coisa aconteceria a partir dali, algo brando, porém abrupto”. Nesta linha, creio eu, temos oito nós dramáticos, um fecho que magnifica o entrecho encenado, entrecho de recorte banal de alguns passos com uma lembrança que aciona um augúrio, uma previsão funesta, e que remete de volta ao título, em movimento circular de leitura, na eternidade exemplar do narrado: “onde estará o pai?” 

O fecho que não encerra, que não é moldura de fim, é potente e ocupa uma única linha. Tal concentração de nós dramáticos nos traz efeito de intensidade, aspecto fundamental na construção de contos mínimos e decisivo no estudo das micronarrativas.

O que tal movimento ressalta, no conto de Whisner Fraga, é a angústia da ausência do pai biológico da criança, ausência talvez circunstancial, talvez histórica, mas ausência duramente sentida no contexto encenado, além da ausência existencial do Pai, o protetor celestial, a livrar a mulher e seu filho da dor trivial de uma chave esquecida e das dores maiores da humana lida. 

No estilo gráfico que Whisner Fraga tornou característico da sua ficção, todo o texto, incluso o título, está em minúsculas, o que iguala pai terrestre, pai celestial, mulher e criança em um mesmo diapasão. Além disso, a narrativa se apresenta em um único fluxo, entrecortada apenas por vírgulas e travessões (dois deles, parentéticos, e dois deles pontuando câmbios narrativos entre vozes das personagens ou entre o discurso da personagem e o discurso do narrador).

A narrativa de Whisner Fraga, de nove linhas (a contagem de linhas segue o rascunho da minha digitação), contém no mínimo 27 nós dramáticos na tecitura de seu enredo. No livro, são 13 linhas e um quarto da 14ª linha. Uma média, no livro, de dois nós dramáticos por linha. Ademais, contém 702 caracteres (incluindo espaços), 110 palavras e 589 caracteres sem contar os espaços.

A ficha catalográfica registra que são contos (até porque, lamentavelmente, a classificação bibliográfica normativa ainda não incorporou os gêneros e as formas narrativas mínimas); por seu lado, o posfácio do livro, assinado por Gabriel Morais Medeiros, pontua: “narrativas curtas”, “contos”, “fragmentos”, “pequenas narrativas”, “estilhaços de prosas poéticas”, “paródias de minicontos” e, novamente, “fragmentos”.

Exceto na menção a minicontos, a opção de taxonomia parece ser a de que temos contos configurados por serem curtos, pequenos, fragmentários, em linguagem na qual predomina a prosa poética.

Verifiquemos um outro aspecto, que nos importa ao elaborarmos nossa táboa com a nomenclatura das formas narrativas mínimas. Eis como se encerra a tecitura de Whisner Fraga: “qualquer coisa aconteceria a partir dali, algo brando, porém abrupto” – e, então, o ponto final fecha o texto.

A semântica indica que algo acontecerá, “aconteceria” – evento que permanece em suspenso, “brando, porém abrupto”, que se localiza para além do que está encenado, para além do recorte que o narrador registra. O texto termina sem tal desdobramento, sem ser textualizado o acontecimento anunciado com perfil de clímax.

Temos aqui um novo conceito importante na configuração das narrativas ficcionais: se o enredo tradicional do conto enreda uma mudança de estado, uma reviravolta, ou – nas novelas e romances – uma sequência de reviravoltas, nas formas narrativas mínimas tal reviravolta, no mais das vezes, é tão só indiciada – ou a forma mínima já se instaura após a reviravolta, ou só registra o ápice em clímax, ou tão só delineia a pulsação que vai se desdobrar além da narrativa.

Guardemos o que apuramos da leitura empreendida, e verifiquemos agora – de modo teórico-normativo – o universo das formas narrativas mínimas.

6.

Vamos, pois, definir os (in)exatos limites de uma poética do mínimo narrativo ficcional.

Na definição e no aparato teórico de configuração do mini, do micro e do nano temos, conforme já anotado, certa abundância da terminologia ao lado de muita imprecisão na taxonomia. Vamos aos dicionários para circunscrever uma, digamos, hierarquia de tamanho, de volume, de extensão e de dimensões, em um primeiro momento quantitativo e, em seguida, qualitativo.

Vejamos, em ordem alfabética, os três termos mais utilizados: micro, mini e nano.

Micro é a milésima parte do milímetro; indica escala microscópica. Refere-se ao que é muito pequeno. No Sistema Internacional de Unidades, equivale a 10 elevado a -6 = 0, 000 001.

Mini indica o que é muito pequeno. O termo não é utilizado no Sistema Internacional de Unidades. Relativo a miniatura. Conto de extensão muito pequena. Extremamente pequeno. Diversos dicionários exemplificam com a palavra minissaia.

Nano equivale a um bilionésimo do grama, do litro, do metro e, no tempo, do segundo. No Sistema Internacional de Unidades, equivale a 10 elevado a -9; ou seja, Nano é o milésimo de milionésimo (bilionésimo), o que é assim expresso: 0, 000 000 001. 

Os três termos são utilizados na medida dos chips dos celulares: mini é o maior (ainda que seja bem pequeno), micro é o intermediário e nano é o menor de todos.

Dadas as definições coletadas, vamos tratar a menor narrativa ficcional que possa haver com a denominação de nanoconto; a segunda menor narrativa que possa haver com a denominação de microconto; e a terceira menor narrativa que possa haver com a denominação de miniconto. Parece ser o movimento mais coerente com os respectivos significados de cada um desses prefixos.

Na sequência, a quarta menor narrativa que possa haver nós a denominamos de  conto ultracurto. E a quinta menor narrativa nós a denominamos de  conto curto.

Com a palavra tradicional, conto, denominamos as narrativas ficcionais que ultrapassem a configuração de conto curto até o limite da novela e do romance, que estão além deste estudo.

Em uma “equação”, temos a seguinte sequência,
em que o sinal < significa “menor quê”:

Nanoconto < Microconto < Miniconto
< Conto Ultracurto < Conto Curto < Conto

Para estabelecer os limites de cada subgênero vamos utilizar, de início e de modo simultâneo, uma medida intrínseca, da estrutura do literário, o conceito de nó dramático, conforme definido e exemplificado acima, e uma medida, digamos, externa, exata, que está na objetividade do texto: a contagem de caracteres + espaços (a que nomeamos toques), e que é fornecida por qualquer editor de texto. Em complemento, utilizamos também os conceitos de densidade e de reviravolta.

Uma definição prévia se impõe: qual o parâmetro teórico e prático para distinguir o conto tradicional, de Poe a nossos dias, das narrativas mínimas que emergiram com o nosso mundo digital, nuclear e quântico?

Defino tal limite (ou limes) entre as novas formas mínimas e o conto a partir de uma única pergunta: a narrativa sob exame pode ser lida tendo por parâmetro as teorias do conto expressas por Poe, Tchekov, Joyce, Kafka, Hemingway e Piglia?, pode ser descrito-analisado-interpretado-compreendido com as ferramentas com que leio Maupassant, Machado, Mansfield, Woolf, Borges, Guimarães Rosa e Cortàzar?

É, pois, no que já está assentado nas teorias do conto e na prática da escrita e da exegese dos autores paradigmáticos da história do conto que encontro a linha divisória entre eles e o conto micromínimo de nossos dias.

O conto curto deve ser inserido na mesma lógica de leitura do conto; ao longo do século XIX e XX tivemos muitos contos curtos de grandes contistas. No Brasil, entre outros autores, Dalton Trevisan, desde os anos 1950, e Luiz Vilela, desde os anos 1960, nos legaram diversos contos curtos de excepcional fatura. Tal movimento tem seus epígonos nas gerações seguintes. Tais contos curtos são lidos com a teoria do conto, conforme os autores acima os inventaram, e se insere na mesma lógica de produção textual que realizaram.

Já o nanoconto, o microconto, o miniconto e o conto ultracurto ganham uma dinâmica inteiramente diferenciada, um contexto criador diverso, uma morfologia e uma mecânica enunciativa com pressupostos completamente diferentes. A meu ver, ao escaparem das possibilidades teóricas consagradas, constituem gênero novo e demandam um novo paradigma teórico, capaz de os compreender, cada um deles em sua especificidade no âmbito das formas narrativas ficcionais mínimas.

Senão, vejamos.

Poe quer um tom e um efeito único para o conto – e as formas narrativas mínimas destoam, descartam tais modulações e buscam o impacto singular, nocauteiam com um único golpe, suave e brutal, no instante mesmo em que o gongo soa para o início da leitura. As formas narrativas ficcionais mínimas não permitem ao leitor sequer se sentar. 

Tchekov afirma que um conto pode não ter final, mas que não há maneira de não existir sua moldura de início. As ministórias não tem nem início nem fim com as molduras das narrativas “clássicas”.

Joyce prescreve a epifania como movimento do diálogo encenado para que a personagem passe por transformação(ões) existencial(is). A microficção, quando muito, tem um momento único de iluminação, sem tempo-espaço para a personagem ser exposta no processo de se transformar.

Kafka narra um filme com começo, meio e fim na sucessão do avesso, do absurdo e do inusual. O contista quântico quando muito fotografa um átomo do caos com a lente da elipse.

Hemingway constrói um iceberg do qual conhece analogicamente inclusive as águas do oceano em volta. O contista digital resume a narrativa a dois bytes, seja no nanoconto, no microconto, no miniconto ou no conto ultracurto.

Piglia vê no conto uma história evidente e uma história secreta, cifrada nos interstícios da primeira história. Para os ficcionistas das formas mínimas não há história, não há verdade, e a narrativa está no vazio, na elipse, na alusão, na tecitura medida em microns, em quarks, em fótons, em bósons, no espaço de uma única parte do bilionésimo.

É importante que se registre que os grandes poetas e os grandes ficcionistas produziram, desde o século XIX, e mesmo antes, alguns contos ultracurtos e até minicontos, mas o fizeram de modo excepcional e não com o propósito estético e de representação referencial que hoje move os novos microcontistas.

O texto de Whisner Fraga, acima destrinchado quanto aos nós dramáticos que fazem a tecitura da narrativa, parece bem na fronteira do conto ultracurto para o conto curto. 

Isso nos faz definir em 700 caracteres (incluindo espaços) e em 35 nós dramáticos o limite máximo para um conto ultracurto (poderíamos, de modo objetivo, também mencionar o número de palavras, de linhas – definindo fonte e corpo da fonte para padronizar – ou de caracteres sem espaços). A partir de considerações do nanoconto, do microconto e do miniconto, que estão abaixo, o tamanho mínimo do conto ultracurto fica em 551 caracteres (com espaços) e 29 nós dramáticos. Importante: esses números são meramente referenciais, há que ler cada narrativa mínima em sua fatura literária para discernir em qual categoria ela deve ser incluída.

Nomeamos ao nanoconto, ao microconto, ao miniconto e ao conto ultracurto, genericamente, quando for o caso, de microficçoes, ou ministórias, ou utilizamos para eles qualquer termo similar, aglutinador, sintético, tendo claro, sempre, que nos referimos às formas narrativas ficcionais mínimas.

Dito isso, o conto curto se estabelece a partir de 701 caracteres e 36 nós dramáticos até 3500 caracteres e 175 nós dramáticos; e o conto tradicional, nesse caso, a partir de 3501 caracteres e 151 nós dramáticos, até algo impreciso e indefinível em torno de 20 mil ou 30 mil caracteres (sempre com espaços) e 800 a mil nós dramáticos.

Importa muito ressaltar – não custa repetir – que essas indicações são parâmetros genéricos, e que cada peça literária deve ser analisada intrinsecamente para ser classificada. Importa, ainda, acrescentar dois outros aspectos:

  1. Os autores – e não só os geniais, os grandes – são inventivos e adoram mostrar que são capazes de realizar o que a teoria define de outro modo; esse é, aliás, um critério para diferenciar escritores de escrevinhadores, autores de aprendizes, amadores (de quem ama) de amadores (de quem só rascunha precariamente);
  2. Essa classificação, como qualquer taxonomia, pouco acrescenta à leitura literária, sendo antes tão só ponto de partida da descrição, a partir da qual se pode chegar à efetiva leitura do texto literário que for devidamente analisado e interpretado, para só então se produzir uma exegese, uma hermenêutica, uma compreensão.

O nanoconto começa com zero caractere e zero nó dramático (sim, há microconto com essa fatura: ver minimus & brevíssimos, disponível AQUI) e vai até cinco nós dramáticos em 99 caracteres (com espaços).

O microconto vai de 100 a 333 caracteres (com espaços) e de 6 a 17 nós dramáticos.

O miniconto se define a partir 334 caracteres (com espaços), até 550 caracteres (com espaços), tendo entre 18 a 28 nós dramáticos.

Quanto ao número de palavras, em uma primeira visada taxonômica, talvez possamos considerar que o nanoconto fica mais ou menos entre zero e 15 palavras; o microconto, entre 16 e 45; o miniconto, entre 46 e 90; e o conto ultracurto, com entre 91 e 120 palavras. Esses limes, no entanto, precisam ser ainda mais elásticos que o referente à contagem de nós dramáticos, que é intrínseca à narratividade e, portanto, mais decisiva, a meu ver, do ponto de vista estrutural.

Outras características a serem eventualmente consideradas: 

  • o número de linhas deve ser considerado na diferenciação entre as formas mínimas (no microconto, 12 linhas no máximo é o parâmetro dos concursos realizados na Pangeia – ver Micros-Beagá, Micros-África e Micros-Uai! –, o que parece bastante razoável);
  • o título é obrigatório em qualquer uma das formas mínimas (nos editais da Pangeia se prescreve que devem ter no máximo dezoito toques e que devem ficar em uma única linha; as duas exigências, talvez, não sejam assim tão razoáveis, mas é um critério que pode ser observado com proveito).

As prescrições dos concursos da Pangeia, ao que parece, visam obter padronização editorial e parâmetros mais igualitários de julgamento, mas devem ficar em aberto – é o que penso – nos projetos individuais, devido a questões estéticas intrínsecas de cada narrativa e devido ao exercício da criatividade, da inventividade e das necessidades expressivas dos autores.

7.

Momento de retomarmos nossa “equação”, preenchendo-a com as informações acima delineadas de caracteres + espaços (toques ou TQS) e nós dramáticos:

TOQUES NÓS Obs.:
Nanoconto 0 – 99 0 – 5 *
Microconto 100 – 333 6 – 17 *
Miniconto 334 – 550 18 – 28 *
Conto Ultracurto 551 – 700  29 – 35 *
 Conto Curto 701 – 3.500 36 – 175 **
Conto   3.501-… 176 -… ***

* Integra o rol das micronarrativas, das formas narrativas ficcionais mínimas, que constituem um novo gênero cuja gênese se deu, quanto ao referente histórico, com os adventos da tecnologia digital, da universalização da web e das descobertas no âmbito do universo quântico. Essas narrativas demandam um novo referencial teórico, que autores e estudiosos ainda estão no processo de construir.

** O conto curto, a princípio, atende ao referencial teórico do conto, o conto teorizado e realizado ao longo dos séculos XIX e XX.

*** A partir do raciocínio aqui empreendido, o tamanho máximo para um conto está entre 20 mil e 30 mil caracteres (com espaços), com algo entre 800 e mil nós dramáticos – a partir daí estamos no âmbito das narrativas longas, as novelas e os romances.

Obs. complementar e fundamental: os números aqui anotados são meramente indicativos, não sendo balizas inarredáveis ou decisivas: cada texto ficcional deve ser lido a partir do que realiza e do que se propõe como objeto estético.

Problematizemos essa observação complemental e fundamental em detalhe.

Podemos ter um microconto com 150 caracteres mais espaços (TQS) e somente 5 nós dramáticos? Sim. E podemos ter um nanoconto com 10 nós dramáticos em 90 TQS? Também sim. Os limites, as delimitações, são referências: como um limes, não como limites, demarcam faixas com amplitude, e cada faixa, na prática literária, não está atrelada à outra faixa. É o jogo original entre elas, aliás, que criam as maiores surpresas, os encantos estéticos diferenciados.

Para que servem, então, tais delimitações?

Na prática da escrita, cada categoria da narrativa, cada texto, cada entrecho de narrativa, cada enredo, cada tecitura, etc., etc., etc. faz – cada uma e cada um – as suas exigências. O narrador se impõe, o autor dispõe, a retórica estilística propõe, as personagens contrapõem, os textos repropõem, etc., etc. E assim, do jogo da escrita, com seus muitos vetores, temos um texto final que representa o engenho e arte autorais na busca da melhor expressão para aquela narrativa. 

As classificações taxonômicas ajudam a descrever, a entender, a compreender o texto, a tecitura, o discurso, os sentidos e os significados construídos. Ajudam o autor a moldar a forma mínima, na norma ou ao arrepio da norma. Ajudam a definir o referencial teórico adequado para o estudo daquela narrativa em específico. Ajudam o leitor empírico a discernir os efeitos de sentido que o texto – tramado, tecido, entramado em tecitura, tessitura e texturas únicas – lhe dispõe.

Eis um exemplo:

EXPLODIU

Esperançoso saudoso exausto,
o soldado voltava da guerra
quando pisou no explosivo.

Rauer, “brevíssimos”, p. 251 

Com o título, que aqui é mais do que paratexto e se inclui como fecho da narrativa, são ao menos dez nós dramáticos em 83 caracteres (incluindo espaços), ou 93 caracteres, contando com o título. Exceto as preposições, os artigos e a pontuação, todas as palavras modificam, modalizam, alteram ou acrescem significados, constituindo-se pois em nós dramáticos; no modo como está, sem virgulas na primeira linha, os termos, além dos sentidos específicos dos vocábulos, impõem sentidos novos às demais palavras da enumeração, similar a bemóis e sustenidos, entre si engendrando e acrescentando  significados e novos significados ou meio-significados. Ademais, a reviravolta decisiva instala-se para além do texto, no paratexto do título, figurando assim mais uma característica das formas narrativas mínimas, e há densidade, intensidade quanto ao volume de nós dramáticos.

Na equação proposta, dez nós dramáticos indicam a classe dos microcontos, enquanto 93 caracteres (+ espaços) fica na categoria do nanoconto. (Quanto ao número de palavras, 12 + uma no título, teríamos também um nanoconto). Com esses dados, de que modo devemos classificar tal ministória? 

Eu diria que é um microconto extremamente sintético, que preenche informações objetivas contextuais e subjetivas, do âmbito da personagem, com começo, meio e fim, um espaço (guerra), um tempo que engloba futuro e passado em um presente abrupto (quando), sendo, pois, micronarrativa com extensão de nanoconto que se realiza em um microconto, ao complexificar grande volume de nós dramáticos. E a narrativa de Whisner Fraga é um vibrante conto ultracurto, firmemente inserido no modo de construção das microformas ficcionais.

Os demais termos elencados – além dos termos que constituem a taxonomia delineada (nanoconto, microconto, miniconto, conto ultracurto, conto curto e conto) –, a saber: …, brevíssimos, conto curtíssimo, contobreve, formas narrativas mínimas, microartigo, microficção, microformas narrativas, micromínimus, micronarrativa, micrônicas, microrrelato, microtexto, minicrônica, miniensaio, minificção, minimus, mininarrativa, ministória, pequeno conto, twitterliteratura, twitterratura, etc., etc., etc., …, além de outros que porventura não me lembrei ou que desconheça, me parece que devem ser utilizados de modo genérico, referindo-se a questões específicas ou a determinadas circunstâncias, sendo utilizados de maneira geral para se referir ao conjunto das formas narrativas ficcionais mínimas.

8.

O esforço de taxonomia aqui empreendido passou por considerações, por “andaimes”, cujo registro talvez possa ser produtivo ao leitor em busca de proposições para escrita criativa, ainda que sejam considerações de cunho teórico.

Antes de nó dramático, imaginei em aplicar à construção das formas mínimas a ideia de sinapses (que, aliás, ilustram essas reflexões). Nesse caso, não teríamos tecitura e sim rede neural ou rede de sinapses ou rede espacial; a teia se apresentaria com várias camadas e as relações entre os nós pareceriam algo aleatórias, interligando sinapses de diferentes camadas, com os “nós” se apresentando em diversos cruzamentos simultâneos.

Nessa “imagem”, a concepção das formas narrativas ficcionais mínimas se daria a partir do conceito de sinapses, com amplitude espacial, e não em plano único, como no tecido de uma trama textual, o que me parece muito mais interessante e adequado à prática da escrita micromínima. Considerei, no entanto, que tal proposição exige conceitos novos de linguagem, de texto e de narrativa muito diversos dos usuais no momento, e optei por um passo teórico mais cauteloso, nesse instante.

A ideia de rizomas – que talvez tenha ocorrido a quem me lê – não me pareceu adequada, e não só porque geraria confusões conceituais desnecessárias, por já ser utilizada e aplicada às ciências humanas em geral e eventualmente nos estudos literários.

Além de sinapses, de modo mais próximo ao raciocínio desenvolvido, também refleti sobre as palavras tessela, tessitura, tecela (um neologismo, me parece). Em algum momento futuro, talvez venha a utilizá-las, com o aprofundamento das reflexões aqui iniciadas. Está claro desde sempre, me parece, que as considerações aqui desenvolvidas são um primeiro passo taxonômico, algo instintivo, digamos assim, preso a âmbito conceitual já existente quanto ao macro, trabalhando novas concepções somente no âmbito da micronarrativa. 

O conceito de elipse, tomando-o para significar o vazio, o espaço sem nada entre os nós da rede da tecitura, um entre nós na tela, é um equívoco, pois não se trata efetivamente de um vazio: a elipse integra o texto como uma força gravitacional, do mesmo modo que a “massa escura” permeia todos os corpos do universo. Ou seja, a teia, uma teia de aranha, por exemplo, tem vazios entre os fios e os nós, mas o espaço entrefios no tecer da trama textual está preenchido. A elipse é determinada textualmente, é apreendida no seu papel e no que intrinsecamente gera de compreensão ao texto, ela é determinável, ainda que qualquer um dos seus sentidos só se torne discurso na compreensão subjetiva do receptor. 

Em outras palavras, quando escrevemos que um texto ou uma elipse “diz tal coisa”, diz para nós no nosso momento, no nosso hic et nunc, no limite do nosso conhecimento, discernimento e idiossincrasias.  Ainda assim, nas formas narrativas ficcionais mínimas, a elipse, e o que nomeamos de “não-dito”, está dito: a palavra elipse não vem à baila como sinônimo de vazio, pois nas micronarrativas tal vazio é um modo retórico de “dizer” algo.

Importa acrescentar que a ampliação de significados que observamos nas formas mínimas se dá por relações interculturais antropofágicas, um pluri-intertexto estendido; dito de outro modo, o leitor – nas formas narrativas ficcionais mínimas – mergulha nos tempos e nos espaços do humano, das culturas, da vida e da morte.

9.

Na prática, o que nos importa, aos autores, aos criadores, aos escritores que escrevem contos, que escrevem narrativas de formas mínimas, que querem somente dar vazão à vontade de contarem histórias e, através da ficção, tentarem entender o mundo, discernir classificação tão estrita de um novo gênero literário com seus subgêneros?

Nada, absolutamente nada, pois em literatura as regras existem para que as derroguemos de modo inapelável, embora tais limes sejam, ao mesmo tempo, um guia, um mapa, um conjunto de noções que orienta o discernimento para a discordância, a construção de efeitos, o esforço estético da realização literária.

Importa também considerar que, até mesmo nos romances-rio, nos romances de vários volumes, quanto maior a concentração de sentidos construídos com o menor número de vocábulos, maior e mais significativa é a força literária do texto. As micronarrativas exponenciam tal potência.

No exemplo analisado, Whisner Fraga faz extraordinária concentração de nós dramáticos nas duas linhas que encerram sua narrativa. A amplitude do pathos assim constituída, a intensidade assim criada, substitui o clímax do conto tradicional (de extensão superior a 3.501 caracteres mais espaços), e como o clímax não é textualizado, não há reviravolta, e a ausência de reviravolta é elemento central na constituição das formas narrativas mínimas.

Já o nanoconto é a narrativa que, em uma única linha, concentra tantos nós dramáticos quantos estão no fecho do conto ultracurto de Whisner Fraga. O exemplo do nano-microconto “Explodiu” também nos serve, aqui.

Essa linha que constitui o nanoconto pode ter somente 5 nós dramáticos, mas pode ter 2, 4 ou 8 ou 10, e continuar sendo um nanoconto. Em literatura, os limites são imprecisos, inexatos, e a definição descritiva deve abordar diversos fatores.

Conforme as considerações que fizemos, podem ser utilizados para configurar cada subgênero das formas mínimas a extensão (toques, linhas, etc.), a quantidade (de nós dramáticos, o número de palavras), a intensidade (a concentração de nós dramáticos) e a ausência de reviravolta.

Ah!, mas há contos de atmosfera, rarefeitos, também sem clímaxes. Sim, os há, e do mesmo modo podemos ter nanocontos (ou outra forma mínima) impressionistas, descritivos, rarefeitos quanto ao drama e aos nós tecidos na tessitura literária, e ainda serem nanocontos, ou microcontos, ou minicontos, ou contos ultracurtos.

Se há certo voluntarismo na tabela que criei (além da experiência de leitor, de analista, de estudioso e de autor), as margens possíveis em limes, a expansão exegética e criativa de cada estudioso ou autor diante da táboa exposta, permite maleabilidade e produtividade na criação e na leitura das microformas. Assim é, e tal taxonomia se impôs em nomenclatura com essas subdivisões porque um nanoconto não é um microconto, que não é um miniconto, que não é um conto ultracurto, que não é, definitivamente, um conto curto ou um conto.

A taxonomia dada, formalista, morfológica, com as “métricas” quantitativo-qualitativas, a intensidade textual na construção de nós dramáticos, o modo como a reviravolta é colocada aquém ou além do texto, contempla em si sua própria exceção, seu oroboro – e aí está a beleza, a plasticidade, a importância da literatura: absorver o outro diferente de si em si, dialogar com a alteridade que do eu nega conceitos e definições, trazendo para o interior da subjetividade do sujeito enunciados (o autor, o narrador, a personagem) até mesmo a sua negação. 

No amálgama que tece o estético, a literatura, nas formas usuais e consolidadas, contém o histórico, o social, o político, o existencial, o sim e o não, a complexidade do singelo, o eu, o inexistente e o tudo. Assim também ocorre com as microformas ficcionais narrativas.

A literatura não serve para nada, dizem alguns, e de fato talvez assim seja – mas é justamente por isso, e por fazer dos oxímoros o uno, por conter em si a cada manifestação o contraditório, o humano multiforme, que a literatura – do romance mais extenso ao nanoconto mais concentrado – é a ferramenta humana mais adequada para o conhecimento e para a necessária transformação do humano.

 

 

BIBLIOGRAFIA MÍNIMA
Confira bibliografias completas e outras indicações: AQUI, AQUI e AQUI

AGUIAR, André Ricardo. Agulhas no palheiro. Itabuna, BA: Mondrongo, 2021.

AGUIAR, André Ricardo; SALVI, Adriano; MARKENDORF, Marcio. Ainda estavam lá. Florianópolis: [s.n], 2021.

ALBERGARIA, Lino. A rede da memória. Posfácio “O microconto como ‘ilhas’ da memória em Lino de Albergaria”, de Rauer. Belo Horizonte: Quixote+DO, 2021.

BENJAMIM, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. Obras escolhidas, volume I, 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.

BORGES, Elias. Lipoaspirados. Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul / FIC, 2011.

DOMIT, Rodrigo. Colcha de retalhos. Brasília: Utopia, 2011.

FRAGA, Whisner. Usufruto de demônios. “Posfácio” por Gabriel Morais Medeiros. Campinas, SP: Ofícios Terrestres, 2022.

FREITAS, Alana. Pespontos.  Itabuna, BA: Mondrongo, 2018.

GUIDUCCI, Wendel. Minificção e crônica no Brasil: trânsitos possíveis. Curitiba, CRV, 2021.

GUIMARÃES, Ronaldo. Contos de Réis. Belo Horizonte: Miguilim, 2021.

INFETO. Poética precoce – quase haicais e outros poemetos. Salvador: Impressão do autor, 2019.

JOLLES, André. Formas simples: legenda, saga, mito, advinha, ditado, caso, memorável, conto, chiste. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976.

KAFKA, Franz. Cartas a Milena. Trad. e prefácio Torrieri Guimarães. São Paulo: Exposição, [196?].

KAFKA, Franz. Escritos sobre el arte de escribir. Recopilados por Eric Heller y Joachim Beug; traducción Michael Faber-Kaiser. Madrid: Fuentetaja, 2003. (Escritura Creativa – El oficio de escritor).

LIMA, Kleber. Livro incendiário. Ilustrações Fernando de Castro Lopes. Brasília: Da Anta Casa Editora, 1993.

MESQUITA, Samir. 18:30. São Paulo: Edição do autor, 2009.

PAULA, Branca Maria de. Nanocontos. Belo Horizonte: Quixote+Do, 2019.

PEREYR, Roberval; FONSECA, Aleilton (Orgs.). Tudo no mínimo: antologia do miniconto na Bahia.  Itabuna, BA: Mondrongo, 2021.

RAUER (Org.). Micros-África. Campinas, SP: Pangeia, 2022. [No prelo].

RAUER (Org.). Micros-Beagá. Campinas, SP: Pangeia, 2021.

RAUER. A arte de escrever 19 – Uma metodologia de leitura. Blog da Pangeia, 25 de maio de 2021. Disponível em < https://editorapangeia.com.br/a-arte-de-escrever-19-uma-metodologia-da-leitura/ >, acesso em 16/06/2022.

RAUER. Explodiu. “Brevíssimos”. In: RIBEIRO [Leite], Alciene; Rauer. minimus & brevíssimos. Uberlândia, MG: Pangeia, 2020. p. 251.

TONNETTI, Flávio; MEUCCI, Arthur. Miniensaios de Filosofia: Desejo, Vontade e Racionalidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

— o —

Quer dialogar?
Escreva-me: < rauer.rodrigues@ufms.br >.

Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia.

A ARTE DE ESCREVER

Informação importante: O Prof. Rauer ministrou, em diversos semestres, de 2008 a 2022, no PPG-Letras Mestrado e Doutorado em Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, cursos de escrita criativa; a pedido da Pangeia Editorial, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados e ampliados, vem sendo publicados no Blog da Pangeia; o professor, eventualmente, acolhe e aqui publica estudos realizados por alunos do Curso. Além dos textos que então utilizou, inclusive alguns com os quais trabalhou na graduação, o professor vem incluindo outros, escritos especificamente para o o Blog da Pangeia, ampliando o escopo das aulas para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar!!!

Claudia Amoroso Bortolato
Editora-Executiva
Pangeia Editorial

AULAS ANTERIORES DA SÉRIE A ARTE DE ESCREVER:

(Clique nas palavras com link para ir para a aula)

Apresentação – Como publicar seu livro

Aula 1 – Oito lições de Isaac Babel

Aula 2 – Segredos da ficção, por Raimundo Carrero

Aula 3 – Palahniuk: evite verbos de pensamento e outras dicas

Aula 4 – Quinze escritoras e as minúcias da Arte de Escrever

Aula 5 – 29 aforismos sobre o microconto

Aula 6 – Para escrever para crianças e jovens

Aula 7 – Síntese e concisão na escrita do haikai

Aula 8 – 33 dicas de escrita de Hemingway

Aula 9 – Técnica e engenho na escrita para tevê e cinema

Aula 10 – A arte de escrever na visão de Franz Kafka

Aula 11 – Ferramentas e dicas de Stephen King

Aula 12 – A concisão do infinito, com antologia de microcontos

Aula 13 – As lições de Camus, autor de “A peste”

Aula 14 – Vamos reinventar o soneto?

Aula 15 – Defina sua “profissão de fé” no ato de escrever

Aula 16 – Ernest Hemingway: um mergulho na “Teoria do Iceberg

Aula 17 – A ética e a estética do Vampiro

Aula 18 – A metalinguagem

Aula 19 – Uma metodologia da leitura

Aula 20 – Microconto: cacos, estilhaços e fótons

Aula 21 – Haikai, Tanka, Renga, Senryu

Aula 22 – Do conto ao nanoconto

A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.

https://editorapangeia.com.br/blog/

EDITORA PANGEIA:

Quem Somos – Valores

Orçamento

Deixe um comentário