A ARTE DE ESCREVER 18 – A METALINGUAGEM

Metalinguagem e intertextualidade existem desde a constituição da literatura como um conjunto integrado de autores, obras e público, parafraseando a definição de Antonio Candido para sistema literário. Desde o advento do modernismo, tornaram-se elementos, se não centrais, de muita evidência, sendo muito constantes – para não dizer preponderantes – nos nossos dias.

Na aula de hoje, tratamos da metalinguagem, com o estudo de um poema e depois colacionando vários exemplos.

*   *   *

              Tomemos nas mãos, e sob o olhar leitor, o poema I do Canto VII, “Audição de Orfeu”, do incomensurável Invenção de Orfeu, o poema épico que Jorge de Lima publicou em 1952:

I

A linguagem

parece outra

mas é a mesma

tradução.

 

Mesma viagem

presa e fluente,

e a ansiedade

da canção.

 

Lede além

do que existe

na impressão.

 

E daquilo

que está aquém

da expressão.

(Jorge de Lima, Invenção de Orfeu)

 

Vemos que se trata de um soneto, com poucas rimas aparentes, construídos com versos trissílabos que, no entanto, apesar de serem lidos em ritmo rápido, tem uma cadência que não é agalopada nem dançante, como os poemas de poucas sílabas poéticas costumam ser.

Assim, intuímos, pela forma especificamente manejada e transmutada, que se trata de um poema voltado para a reflexão, que provavelmente prioriza a construção de significados semânticos.

Vejamos pois os efeitos de sentido que depreendemos da leitura e releitura, acurada, verso a verso, estrofe a estrofe.

O primeiro verso explicita o tema: “A linguagem”. A estrofe anuncia que ela, a linguagem, “parece outra”, mas que “é a mesma”. E explicita que o paradoxo insinuado desta outra-mesma que é “[a] linguagem” se especifica como “tradução”.

O que vemos e lemos é, pois, um texto de linguagem que trata da linguagem – é a metalinguagem. O poeta fala do seu instrumento de poetar, da ferramenta com a qual edifica o poema, do recurso pelo qual a poesia se torna verbo.

Mais que outra-mesma, e sem invocar eventual significado que transite pelo conceito freudiano de unheimlich (o estranho-familiar, o inquietante, o infamiliar, a depender da tradução), a linguagem é apresentada como “tradução”. Ora, traduzir, em célebre formulação de origem italiana, “traduttore-traditore” (traduzir é trair), coliga ao sentido de representar o referente de falsear o representado.

A linguagem, como surge formulada na primeira estrofe, que define o caráter textualmente metalinguístico, metaliterário e metapoético dos versos, é ambígua, esquiva, pois é outra ao se apresentar como a mesma, trai ao postular que traduz, afirma o que representa e nega que seja capaz de elaborar tal representação. Ainda assim, se há um polo negativo, há um positivo, e eles se equivalem.

Entre o mesmo e a outra, entre traduzir e trair, entre representar e não-representar, entre linguagem e opacidade, a estrofe afirma todas as antinomias, firma seu significado ao coalescer, ao aglutinar, ao incorporar ao poema todas as possibilidades em um aqui e agora em moto perpétuo.

Vamos ao que a sequência do poema nos desvela e revela.

A segunda estrofe marca a retomada do vocábulo “mesma”, e agora a palavra caracteriza a linguagem como “viagem / presa e fluente”. Há, pois, uma reconfiguração do ato de traduzir por uma nova antinomia. Ao contrário da paradoxo da primeira estrofe, que surge como de pouco impacto e se mostra, ao fim, de grande radicalidade, a de agora utiliza palavras que indiciam uma oposição muito forte, quase um oxímoro, mas que, completando e modalizando o termo “viagem”, termina – “presa e fluente” – por serem complementares, em movimento sequencial que indicia o rompimento de uma dificuldade inicial, na partida, que é superado, no passo seguinte, pela fluidez da linguagem-viagem.

O “produto” que a linguagem lírica produz no ato poético verbal é um poema. É o que surge nos dois versos finais da estrofe. A poesia gera o poema, figurado como canção e gestado em “ansiedade”. O poeta-tradutor-traidor flui na apreensão da poesia pela construção do poema-linguagem a partir de ato que nasce – na viagem que se inicia – contristado pelos limites prisionais (e aqui estão a linguagem, a cultura, a civilização, o contexto, até a autocensura); o gestar e produzir a canção se faz na “ansiedade” de romper, pelo logos e pelo pathos da invenção, os limites iniciais.

Em outros termos: há um encapsulamento restritivo inicial que é rompido pela racionalidade do artesão conjugada à sensibilidade do artista; em outros termos, é o par renancentista proposto por Camões ao evocar que na sua escrita não lhe faltem “engenho e arte”.

Canção constituída e nas mãos do leitor, chega o momento da leitura. Estamos na terceira estrofe do poema. Ela se dirige a um “vós” retórico, imperativo, ordenador, definidor do princípio inaugural que deve orientar o ato de ler. O modo verbal estabelece comando de exemplaridade que prescreve, como regra universal, que a leitura deve ir “além / do que existe”, deve ir “além / do que existe / na impressão”.

Antes de ser motivo, tema, mote inspirador, o que existe é, pois, no que inferimos desses versos de Jorge de Lima, um referente de estatura inferior e menor do que aquele que pode ser alcançado pelo poético. No entanto, o que existe está modulado pelo complemento do verso que fecha o terceto: “na impressão”.

O vocábulo “impressão” se afigura ao menos com duas conotações: refere-se, de maneira geral, à apreensão sensorial de um fato ou de um fenômeno, no caso o texto que se lê, e refere-se de maneira mais restrita à página, à folha de papel que recebe pigmentos de tinta que compõem uma mancha tipográfica decodificável em letras, palavras, frases, significados.

A apreensão sensorial dos significados constituídos pelo texto como um discurso que gera múltiplos sentidos exige do leitor, nos diz o poema, a busca do que está além do que é o primeiro entendimento: os passos do leitor não podem nem devem se deter na primeira compreensão, inicial; e, assim, sucessivamente, novos passos de escavação textual se mostram necessários na busca de significados que subjazem nos poemas.

De certo modo, o texto é como uma espiral sem fim, reverberando novas possibilidades de leitura a cada novo dia, a cada novo leitor, a cada nova geração de leitores, a cada nova circunstância histórica. O leitor deve sempre ir “além” de si mesmo, e o autor deve gerar de modo consciente múltiplas possibilidades, além daquelas que o acaso, o inconsciente, os fados e os desfados já inculcam no texto.

O poema – no que, aliás, dialoga com o conjunto de poemas e cantos que constituem este a Invenção de Orfeu – acrescenta uma outra dimensão ao que a estrofe anterior indicou. Em termos sintáticos e semânticos, os últimos três versos do poema são continuidade dos versos imediatamente anteriores. No entanto, não só constituem uma estrofe específica, como vêm após um ponto final. Assim, a estrofe final ganha expressividade, autonomia, uma dimensão que transcende a função de complemento do já fixado, constituindo-se como afirmação nova com o mesmo valor de exemplaridade do afirmado na estrofe anterior.

Para o poeta, é preciso, além de buscar o “além”, desbravar também, na leitura, tudo “que está aquém / da expressão”. Se a “expressão” toma forma como poesia-canção, como linguagem-viagem, como tradução-traidora, o que é este “aquém”?

O poema I desta “Audição de Orfeu”, fechando aqui seu exercício metalinguístico, deixa para os demais poemas e para a própria escrita da Invenção de Orfeu a resposta. Podemos especular que se trata de aspectos intrínsecos ao poeta, sua formação, sua biografia, suas convicções, e de aspectos extrínsecos, como o momento histórico de seu povo, de seu país, da civilização em que se insere.

O conjunto do que está “além” e do que está “aquém”, todo ele conta, de modo genérico, e devemos buscar incessantemente a esses aspectos gerados de significados em cada novo texto literário em específico, tanto nos que lemos quanto nos que escrevemos.

Pois…

O poema é um diálogo do poeta com o mundo, é o murmúrio de uma voz que capta a pulsação do universo que o perfaz e a configura de modo lírico. É o verbo recriando o mundo, criando a canção e dando existência ao poeta como travessia de recriação permanente da linguagem.

*   *   *

Abaixo, excertos de crônicas, poemas, reflexões, epigramas e microcontos metaliterários de diversos autores, uma pequena amostra da miríade de textos literários que tratam da própria arte literária.

 

MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

 

Não existem livros morais ou imorais.

Os livros são bem ou mal escritos.

Oscar Wilde

 

O exercício da crônica

Escrever  crônica é  uma  arte  ingrata. Eu  digo  prosa  fiada, como faz  um cronista;  não a prosa de  um ficcionista, na qual este  é   levado  meio a  tapas pelas  personagens e  situações  que, azar dele, criou  porque quis.  Com um prosador do  cotidiano, a coisa  fia  mais fino. Senta-se  ele diante de  uma  máquina, olha através da  janela e  busca  fundo em  sua  imaginação  um assunto  qualquer, de  preferência colhido no  noticiário matutino, ou  da  véspera, em  que,  com  suas  artimanhas peculiares, possa  injetar um sangue  novo.

Se nada  houver, restar-lhe o recurso de olhar em torno e  esperar que, através de  um processo associativo,  surja-lhe de  repente a  crônica, provinda dos   fatos e  feitos de  sua  vida emocionalmente despertados pela concentração.  Ou  então, em última instância, recorrer ao assunto da falta de  assunto, já bastante  gasto,  mas do  qual,  no  ato de escrever,  pode surgir o  inesperado.

Vinícius de Moraes

 

Ressalva

Este livro foi escrito
por uma mulher
que no tarde da Vida
recria a poetiza sua própria
Vida.

Este livro
foi escrito por uma mulher
que fez a escalada da
Montanha da Vida
removendo pedras
e plantando flores.

Este livro:
Versos… Não.
Poesia… Não.
Um modo diferente de contar velhas estórias.

Cora Coralina

 

Nova Poética

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.

Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.

Vai um sujeito,

Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:

É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:

Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

Manuel Bandeira

 

Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente.

Tzvetan Todorov

 

Leitor Pulsante

No microconto

o sugerido

lateja entrelinhas

e desafia

o leitor

a substantivá-lo.

Alciene Ribeiro

 

Lapidação

o microconto está

no cerne do fractal,

no âmago da seiva,

no imo intestino

Rauer

 

Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.

Clarice Lispector

 

Um poema como um gole d’água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.

Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

Mario Quintana

 

Áporo

Um inseto cava

cava sem alarme

perfurando a terra

sem achar escape.

 

Que fazer, exausto,

em país bloqueado,

enlace de noite

raiz e minério?

 

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

 

em verde, sozinha,

antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.

Carlos Drummond de Andrade

 

É verdade que ninguém precisa matar por isso, mas a distinção entre prosa e poesia fascinou este modesto cronista nos seus tempos de universidade a partir de um outro russo, o filósofo Mikhail Bakhtin (1895-1975). Em um de seus textos, Bakhtin sugere que a voz do poema é sempre a voz do poeta; o poeta se confunde completamente com o verso que canta. E a voz do prosador é sempre a voz de uma outra pessoa; o prosador, covardemente, esconde-se na linguagem dos outros.

Cristóvão Tezza

“O assassinato da poesia”

18 fev. 2014

 

Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto

expediente protocolo e manifestações de apreço

ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no

dicionário o cunho vernáculo de um

vocábulo.

Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de

si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante

exemplar com cem modelos de

cartas e as diferentes maneiras de

agradar & agraves mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare.

– Não quero saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

*   *   *

Com esta aula, encerramos a etapa de 2020 deste A ARTE DE ESCREVER. Retornamos em março de 2021. Inscreva-se para receber os avisos de publicações feitas neste blog. Deixamos a sugestão de que se exercite na escrita de poemas e contos de reflexão metaliterária: é um modo de afinar a escrita ao mesmo tempo em que define o que é – para você – o próprio ato de escrever, o que é ser escritor, o que é a literatura.

Veja a lista abaixo com os links das aulas anteriores: todas elas trazem, cada uma a seu modo, exemplos de metalinguagem, com autores os mais diversos, com lições as mais diferenciadas. Vale a pena ler ou reler agora essas aulas com a perspectiva da metaliteratura.

Peço licença para um informação pessoal, pertinente ao tema: a Editora Pangeia lançou recentemente o livro minimus & brevíssimos, que Alciene Ribeiro e eu dividimos, e nele há diversos microcontos metaliterários (dois deles estão reproduzidos acima).

Boas férias, com cuidado e com saúde diante da pandemia – que arrefece, mas continua à espreita. Boas leituras, boas (e seguras) festas, bom ano novo, e até 2021.

*   *   *

Quer dialogar?

Escreva-me pelo e-mail < rauer.rodrigues@ufms.br >.

Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia

 

A ARTE DE ESCREVER:

Informação importante: O Prof. Rauer ministrou, no primeiro semestre de 2020 e em semestre anterior, há alguns anos, na pós-graduação de Letras / Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, cursos de escrita criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados pelo professor, vem sendo publicados no Blog da Editora Pangeia. Além dos textos que então utilizou nos cursos, o professor vem incluindo outros, ampliando o escopo das aulas para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar. (Rizio Macedo, Editor, Editora Pangeia).

 

AULAS ANTERIORES DESTA SÉRIE

Apresentação – Como publicar seu livro

Aula 1 – Oito lições de Isaac Babel

Aula 2 – Segredos da ficção, por Raimundo Carrero

Aula 3 – Palahniuk: evite verbos de pensamento e outras dicas

Aula 4 – Quinze escritoras e as minúcias da Arte de Escrever

Aula 5 – 29 aforismos sobre o microconto

Aula 6 – Para escrever para crianças e jovens

Aula 7 – Síntese e concisão na escrita do haikai

Aula 8 – 33 dicas de escrita de Hemingway

Aula 9 – Técnica e engenho na escrita para tevê e cinema 

Aula 10 – A arte de escrever na visão de Franz Kafka

Aula 11 – Ferramentas e dicas de Stephen King

Aula 12 – A concisão do infinito, com antologia de microcontos

Aula 13 – As lições de Camus, autor de “A peste”

Aula 14 – Vamos reinventar o soneto?

Aula 15 – Defina sua “profissão de fé” no ato de escrever

Aula 16 – Ernest Hemingway: um mergulho na “Teoria do Iceberg

Aula 17 – A ética e a estética do Vampiro

A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.

https://editorapangeia.com.br/blog/

EDITORA PANGEIA:

Quem Somos – Valores

Orçamento

 

Comentários Recentes

    • Rauer Rib
      maio 8, 2021 - 9:48 pm · Responder

      Muito obrigado, Carmélia, pelo comentário, que é um incentivo para perseverar, ainda que em meio às ruínas que nos envolvem neste momento. Cordial abraço!

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