Um escritor somente se realiza na plenitude criativa se o ato de escrever é completamente liberto de qualquer censura, de quaisquer constrangimentos, de qualquer óbice, limite, restrição. O ato de escrever deve se defrontar somente consigo mesmo e, encontrando qualquer resistência ou aporia, deve desafiar a circunstância, deve superar os desafios, deve apostar para além dos limites estatuídos, deve ir além de si mesmo, deve ir muito além dos limites do próprio autor. O criador deve sempre ser muito maior que o escritor, o ser de carne e osso, ente civil circunscrito, homúnculo muitas vezes desprezível. Escrever literatura é sempre uma forma de transcender.
No entanto, o ato de escrever é sempre aprioristicamente definido por parâmetros históricos e contextuais oriundos da história da literatura e pela bagagem de leitura do escritor. Um dos condicionantes se dá pela definição dos gêneros literários, seus subgêneros, suas tipologias, suas formas, seus estilos de época e suas escolas literárias, como motivos, maneirismos, constantes temáticas, narrativas, poéticas ou estilísticas, além de contextos históricos na amplitude da cultura, da política, dos costumes, ou nas contingências da família, do clã ou da urbe.
A liberdade se dá, pois, por escolhas que circunscrevem e delimitam o ato livre da escrita, e a escrita é o exercício das opções que realizam a potência de romper cadeias. A literatura é uma espécie de sublimação da potência erótica em liberação plena – denegar tal liberdade significa destituir o ato literário de se realizar, significa constrangê-lo ao papel de discurso utilitário, monovalente, significa abortá-lo, matá-lo e sepultá-lo no mesmo gesto que o pretendia criar. Sem ser exercício pleno da liberdade, a literatura fenece antes mesmo de existir.
O desafio do autor-criador se coloca, pois, em manter a chama viva da liberdade criativa circunscrito pelos gêneros, pelas formas, pelos leitmotiv, pelos topos, pelas demais escolhas que indiciam as margens entre as quais o caudaloso rio da criação se desenvolve. Há que ter engenho e arte, como anotou Camões – o engenho configurando o conhecimento de um logos, da razão de ser da criação em ato, e a palavra arte indicando o instrumental, a poiesis, e o pleno domínio dos meios expressivos.
Tratamos hoje da forma canônica soneto, que há oitocentos anos está entre as mais utilizadas pelos poetas. Nosso desafio é compreendê-la e apreendê-la para reinventá-la.
* * *
Para destrinchar o soneto, tratemos, antes, de forma breve, da poesia, para estudarmos a construção do poema sob duas perspectivas: a da forma geral da lírica e a da fôrma, com a fixação de um modelo que cria uma tradição.
No poema, manifestação verbal da poesia, a importância da forma mais se patenteia, seja pela ocupação espacial e gráfica da página, seja pelo ritmo imposto nas peças de poesia, seja pela expressividade que se busca em textos sintéticos de manifestação íntima, seja pela tradição da lírica, cujo diálogo com a música se estabelece — para além do acompanhamento com instrumentos — pelo ritmo, pelas assonâncias, pelas aliterações, pelas rimas e por outras figuras de linguagem. Em clave diversa, se na prosa o tema caminha para uma impressão que solicita um logos, no poema a manifestação do eu-lírico indicia certa cumplicidade entre emissor e receptor, entre o enunciador e o enunciatário, constrói um sentir compassivo cujo conhecimento se instaura pelo pathos.
A forma e a fôrma do poema desempenham papel decisivo para estabelecer significados, para além da semiose do léxico, pela evocação intertextual e pelo diálogo com os grandes e perenes fluxos culturais e literários. Desse modo, a longa tradição, canônica, do soneto petrarquiano na literatura portuguesa, e da matriz lusa para a literatura brasileira, vem acompanhada pelos topos que os grandes poetas da língua imprimiram à forma.
O eu-lírico arquetípico do soneto é um ser entre a dualidade do amor e a angústia da existência, ontologia em que diversos temas se plasmam, e que vivencia experiências maceradas na intimidade do ser, no cerne do existir, buscando os limites da capacidade de expressão linguística da língua. A manifestação poética, assim forjada, insere no universo literário a semiose de sujeito, o poeta que delega voz a um eu-lírico distinto da sua pessoa física e civil, que se instaura em uma determinada circunstância, em um hic et nunc irrepetível.
O conhecimento forjado nas teias do soneto, definido pela forma e plasmado pela fôrma, é o que o enunciado deve prover e que cabe ao eu-lírico construir — pois a literatura é invenção, constructo, manipulação do verbo. É o deslinde da estrutura edificada, os andaimes da forma, as evocações da fôrma, que o analista deve buscar, desvelando a carpintaria intentada e o edifício construído.
Alguns autores postulam alternância entre o apolíneo e o dionisíaco ao longo da sequência em diacronia das escolas literárias. Há, no entanto, permanências e antecipações de características estéticas, de modo que sempre subjaz, sob o domínio de determinada estética em determinado tempo, nuances artísticas e literárias pretéritas ou que adiantam tópicas que terão prevalência em ciclo posterior. Ainda assim, a fôrma sempre condicionou a forma, mesmo quando o soneto serviu à sátira ou a tópicas que o distanciavam da sua matriz inicial — a angústia do existir e a ambivalência amorosa, indo do platonismo idealizado a exaltado desejo carnal.
Por exemplo, após o romantismo, já em si movimento inserto na corrente da modernidade, e — no Brasil — antes do assim denominado modernismo, as histórias da literatura registram, com destaque e em simultaneidade, dois estilos de época: o parnasianismo e o simbolismo, movimentos poéticos em paralelo ao realismo-naturalismo na ficção. Parnasianismo e simbolismo têm por modo preferencial de manifestação a poesia, e, como forma regularmente constante do poema, o soneto. E se, do ponto de vista do sentimento íntimo que anima cada escola, o soneto lhes serve à perfeição, os ethos de cada estilo se configuram muito diversos entre si. É possível conjecturar que a coexistência temporal e espacial tenha beneficiado aos cultores do soneto em ambas os estilos.
Eis, abaixo, em dois sonetos, similitudes formais em diferentes estilos de época para, ao as destrinchar em detalhe, evidenciar, na fatura final, poemas que compõem pathos muito diversificados na versificação, ritmo, rimas, e outros recursos formais, além de outras escolhas poéticas que os fazem tão diversos entre si.
OS BÁRBAROS
Olavo Bilac
(RJ, 1865-1918)
Ventre nu, seios nus, toda nua, cantando
Do esmorecer da tarde ao ressurgir do dia,
Roma lasciva e louca, ao rebarbar da orgia,
Sonhava, de triclínio em triclínio rolando.
Mas já da longe Cítia e da Germânia fria,
Esfaimado, rangendo os dentes, como um bando
De lobos o sabor da presa antegozando,
O tropel rugidor dos Bárbaros descia.
Ei-los! A erva, aos seus pés, mirra. De sangue cheios
Turvam-se os rios. Louca, a floresta farfalha…
E ei-los, — torvos, brutais, cabeludos e feios!
Donar, Pai da Tormenta, à frente deles corre;
E a ígnea barba do deus, que o incêndio ateia e espalha…
Ilumina a agonia a esse império que morre…
Temos versos dodecassílabos, em estrutura de rimas em abba/baab/cdc/ede, abordando tema histórico da antiguidade clássica, que parece indiciar uma reflexão do choque entre a civilização e a força. Trata-se de peça que liricamente canta a queda de Roma diante dos bárbaros que intitulam o poema. Além do encadeamento vigoroso entre os dois quartetos e os dois tercetos ao entrelaçar as rimas, há logo do primeiro para o segundo verso um enjabement, com o período se espraiando para, ao se alongar, indicar a extensão das lascívias a que se entregavam os romanos. Os dois versos, na sua longa languidez, é a própria representação dos prazeres que se estendiam da tarde de um dia ao amanhecer do dia seguinte. A forma está em perfeita consonância com o significado lexicalmente construído.
E também a interrelação das rimas similares mas diversamente construídas entre os dois quartetos forjam sentidos: é como se o destino de morte do Império Romano estivesse de modo umbilical relacionado e em diametral oposição à pujança dos bárbaros. Vejamos.
O esquema das rimas dos quartetos é abba/baab — ou seja, é o mesmo sem ser o mesmo, é um espelho distorcido, é continuidade em rompimento. O enjabement, que também existe no segundo quarteto, surge, no entanto, entre o segundo e o terceiro versos. O ritmo também se faz de modo diferente: em Roma, o primeiro verso é entrecortado e o segundo é fluido, sem vírgulas; já para os bárbaros, o primeiro verso flui como a cavalaria que avança, e o segundo é entrecortado por vírgulas.
A oposição entre os dois quartetos e seus respectivos universos culturais se faz também pelo cenário e figuras que surgem na cena: em Roma, corpos femininos nus e objetos interiores de lazer (os triclínios), no lapso temporal “da tarde ao ressurgir do dia”; do lado dos Bárbaros, com a palavra grafada com inicial maiúscula, o espaço de origem é frio e eles são comparados a lobos esfaimados a ranger dentes, em “tropel rugidor”— e aqui outra diferença emerge com vigor: a seleção lexical do primeiro quarteto, com predominância de suaves sibilantes, emula a lassidão orgíaca e despreocupada, enquanto as fricativas agressivas do segundo quarteto anuncia o vigor bárbaro em ação.
A forma, sempre, em perfeita consonância com o sentido, qualquer que seja o ponto em análise. E após essa oposição magistralmente edificada pelos quartetos, a construção dos tercetos amplifica a força dos bárbaros até o golpe final sobre a dissoluta Roma, “império que morre”, e que no poema volta à cena somente para encerrar o soneto. Após essa lição parnasiana, vejamos agora uma peça simbolista.
SANTO GRAAL
Alphonsus Guimaraens
(MG, 1870-1921)
Se a tentação chegar, há de achar-me rezando
Na erma Tebaida do meu sonho solitário.
(Miséria humana, humano vício miserando,
Não haveis de poluir as hóstias no Sacrário…)
Se a tempestade vier, há de achar-me chorando,
E como dobrareis, sinos do Campanário!
Subirei à montanha eleita orando, orando…
Não és tão longa assim, ladeira do Calvário!)
Se a tentação chegar, há de achar-me de joelhos,
(Miséria humana, humanidade miseranda…)
Maldizendo a traição dos seus lábios vermelhos.
Se a tempestade vier, e eu cair, nesse dia
Piedosamente irei pela terra em demanda
De ti, ó Santo Graal, Vaso da Eucaristia.
Kiriale (1902)
O ritmo da leitura do poema flui entre o majestoso e o solene, entre o oratório e a genuflexão, pelos longos versos que oscilam de treze para catorze sílabas poéticas, e por períodos com reverberações sonoras, das rimas às assonâncias, opondo o eu-lírico que se angustia vivenciando a tentação erótica e tendo em si a condenação do peso do pecado, internalizada e reiterada como tempestade, e tisnada como poluição, maldição e queda.
O esquema das rimas, em abab/abab/cac/dad, reitera em todas as estrofes uma rima em gerúndio tornada, ao final, rica, com a emersão de um advérbio e um substantivo nos tercetos, e com um substantivo no primeiro quarteto. Mais do que rica, a rima dá amplitude, surpreende, rompendo o que poderia ser um ritmo monótono por cadência apaziguadora, de evanescente espiritualidade.
Chama atenção também as interpolações, pelos parênteses, nas três primeiras estrofes (nos versos de número 3-4, 8 e 10), e a reiteração anafórica lexical e conceitual na abertura das quatro estrofes, com a condicional “Se a” modulada pelo sema “tentação” nas estrofes ímpares e “tempestade” nas estrofes pares, como a dizer que o aceite da tentação física implica em vivenciar a tempestade íntima. Nessa dualidade se constrói o poema, entrelaçando vício e calvário, ambos superados, ao fim, pelo encontro do Graal na Eucaristia.
Em todos os aspectos elencados, vemos que a forma se integra à fôrma e ambas estão amalgamadas à semântica: o soneto se torna penitência e salvação do pecador.
Debrucemo-nos agora, ainda que rapidamente, sobre um soneto de Pedro Kilkerry, singular escritor que decorava seus poemas, uma parte deles recuperados postumamente, em parte, em folhas soltas. É uma poesia com laivos simbolistas, hermética e estranha, fruto da leitura no original de poetas de distintas tradições, como Homero, Dante, Shakespeare, Milton, Mallarmé, Baudelaire, Rimbaud e Laforgue, e ficcionistas ou filósofos como Sterne, Nietzsche, Poe e Flaubert.
ZERO
Pedro Kilkerry
(BA, 1885-1917)
Belo Amor, a olhar da Alma… E o Ódio é fusco! E é vesga a Inveja
Por que atrás da Ilusão, na vontade tens asas?
Por que, no orgulho da Obra, após o do Eu, te abrasas,
Se a Morte — Ursa polar — invisível fareja?
Homens-restos de Raça, e corres tu e atrasas
Esmagado do pé de um deus, que te não veja
Nem a dor que em teu peito, um grande Sol, dardeja…
Oh! os sonhos caem, como as pedras, como as casas…
Tudo se acabará! No futuro, espreitando,
A figura do Caos, sinistramente ansiada,
Por um Como é que espera e a tragédia de um Quando…
E comido do Frio ou do Fogo comido,
O Mundo há de rolar — um Zero desmedido —
Tragado pela boca espantosa do Nada!
O poeta trata da morte (nono e décimo quarto versos) com a certeza de que o homem é um resto do universo que transita sua grande dor na vida carregando sentimentos os mais mesquinhos, perdendo seus sonhos pela trajetória. Essa caminhada consta dos dois quartetos. Os tercetos anunciam de imediato que “Tudo se acabará!”, mas que o homem ânsia pelo Caos que virá como tragédia — e assim, após anunciar que o Mundo é “Zero desmedido”, o homem é “Tragado pela boca espantosa do Nada!”
O poema é construído com versos de treze sílabas. Entretanto, o primeiro verso do soneto contém 24 sílabas gramaticais, que são aglutinadas com violência para as treze sílabas poéticas. Ao abrir o poema com uma profusão de sinéreses e sinalefas (termos técnicos de escansão para diferentes aglutinações de sílabas), o poema produz ao menos dois efeitos imediatos: um profundo estranhamento, a partir do qual a letargia dá lugar à aceleração de leitura, truncada por duas pausas por acentuação (reticências e exclamação), ambos os travamentos rompidos pela conjunção aditiva “e”. Assim se instaura deslizamentos gramaticais e poéticos vários que instauram o efeito de paradoxo sobre o qual o poema é construído.
Se a utilização de Maiúsculas marca palavras que se tornam signos conceituais, ao modo do Simbolismo, o que nos é habitual, a estrutura de rimas termina também por referendar a estranheza e jogo de paradoxos acima anotado. O esquema em abba/abba/cdc/eed tem as três primeiras estrofes ao modo tradicional e o último terceto, com o último verso (14º.) rimando com o 10º, o que é inusual.
Outro elemento de estranheza é a concentração verbal e fluidez na construção do terceto final, em contraste com aquele falso alongamento com paradas e reengates imediatos do primeiro quarteto. O jogo de paradoxos transita dos versos e da semântica para a estrutura formal.
Desse modo, a crítica ao vazio do cotidiano e o profundo niilismo existencial do soneto estão no léxico, no ritmo, nas rimas, na estrutura, no estranhamento e na fluidez, nos paradoxos e nos conceitos evocados. Forma, fôrma e semântica estão amalgamados, entranhados um no outro, coalescentes para construírem o poema, gerarem sentidos, impactarem o logos por um pathos apreendido sensorialmente e intelectualmente.
Os três poemas apresentam certo tom narrativo, e ainda assim alcançam o alto ethos poético que caracterizam os grandes poetas — seja o mestre parnasiano Bilac, o gênio simbolista Cruz e Sousa ou o diferenciado Kilkerry. Todos eles têm rimas e ritmos diferentes, constroem diversos tônus sonoros, indiciam diferentes visões da poesia, da História e da transcendência; ainda assim, os três estão inseridos e se circunscrevem no âmbito da forma e da fôrma herdadas da história da literatura mundial.
Deste modo, podemos afirmar que, no soneto, forma e conteúdo constroem, e definem, impregnados pela fôrma, o estatuto do literário. Voltemos a nosso percurso histórico para verificarmos momentos de invenção e — o que é o nosso objetivo maior — propormos possibilidades de reinvenção.
Na tradição que teve em Petrarca (1304-1374) o primeiro mestre, o soneto fixou, como vimos, a forma clássica dos catorze versos, divididos em dois quartetos e dois tercetos; no nascedouro, seu tema mais constante o amor, motivo que ainda se mantém em nossos dias. Tal tópica, na forma e na fôrma, chega a Portugal no Classicismo, tendo em Camões (1524-1580) um seguidor dedicado e expressivo.
Nomear, na literatura portuguesa ou nas literaturas românicas, os cultores do soneto seria fazer a própria historiografia das respectivas literaturas, com amplo recenciamento dos principais poetas, dos poetas menores e até dos poetas sem nenhuma expressão. Vamos, pois, a variações, a invenções a partir do quadro canônico.
* * *
Iniciemos pelo assim nomeado soneto inglês. Foi a fôrma cultivada por William Shakespeare e se apresenta com três quartetos e um dístico final; muitas vezes a mancha gráfica se apresenta de modo contínuo, como uma única estrofe em que os dois versos finais ficam destacados com recuo adentrado. O soneto inglês tem sua força no topos existencial, nas reflexões filosóficas ou em meditações sobre a vida, a morte e o tempo.
O dístico final destaca a “chave de ouro”, em que uma sentença lapidar, memorável, sintetiza em fecho a visão do eu-lírico sobre o tema do soneto. Assim conceber e construir o ápice do poema, de modo a causar forte impressão com o crescimento fórico-tímico do discurso, pela — passe o paradoxo — último raciocínio do logos amplificando ao limite o pathos.
Shakespeare não nomeou seus sonetos e eles são apresentados em sequência indicada por numerais romanos. Vamos ao Soneto cinquenta e cinco.
LV
William Shakespeare
(1564-1616)
Nem mármore, nem áureos monumentos
De reis hão de durar mais que esta rima,
E sempre hás de brilhar nestes acentos
Do que na pedra, pois o tempo a lima.
Pode a estátua na guerra ser tombada
E a cantaria o vil motim destrua;
Nem fogo ou Marte apagará com a espada
Vivo registro da memória tua.
Há de seguir teu passo sobranceiro
Vencendo a Morte e as legiões do olvido,
E os pósteros, no juízo derradeiro,
Hão de a este louvor prestar ouvido.
Pois até a sentença que levantes,
Vives aqui e no lábio dos amantes.
O poema é construído em decassílabos, métrica mais constante nos sonetos. Apesar da mancha única e uniforme nos doze primeiros versos, a pontuação indica os três quartetos, cada um deles em rimas alternadas (cruzadas). Por sua vez, o dístico final se faz por rima emparelhada. O esquema está em abab/cdcd/efef/gg, sem retomada de rimas anteriores, na progressão argumentativa e no adensamento poético da oposição das vanglórias terrenas à perenidade da poesia, que no final é também amor.
Também sem nomeação, indicado por números, foram publicados os assim nomeados “sonetos luxuriosos” de Pietro Aretino. E são luxuriosos pela expansão estrófica e pelo tema constante do amor carnal desbragado. A característica formal que o distingue do soneto criado por Petrarca é o acréscimo de um terceiro terceto (cujo primeiro verso é hexassílabo e não em decassílabo, como os demais do poema). A tópica da carnalidade sexual e o diálogo fescenino entre os amantes integra o pensamento do poeta, que defendia que o corpo nu em cópula produziu “criaturas belas”, enquanto as mãos humanas “dissipam o dinheiro, fazem juramentos falsos, emprestam a juros usurários, torturam a alma, ferem e matam”.
Vejamos o primeiro dos Sonetti lussuriosi, no italiano original.
1
Pietro Aretino
(1492-1556)
Questo è un libro d’altro che sonetti,
Di capitoli, d’egloghe o canzone,
Qui il Sannazaro o il Bembo non compone
Nè liquidi cristalli, nè fioretti.
Qui il Marignan non v’ha madrigaletti,
Ma vi son cazzi senza discrizione
E v’è la potta e ‘l cul, che li ripone
Appunto come in scatole confetti.
Vi son gentil fottenti e fottute
E di potte e di cazzi notomie
E ne’ culi molt’anime perdutte.
Qui vi si fotte in più leggiadre vie,
Ch’in alcun loco si sien mai vedute
Infra le puttanesche gerarchie;
In fin sono pazzie
A farsi schifo di si buon bocconi
E chi non fotte in cul, Dio gliel perdoni.
Na fôrma, o soneto à maneira de Aretino segue a estrutura acima, visualmente clara no que difere do soneto canônico. A sonoridade, com versificação e metro, ritmo e rimas, por exemplo, se enquadram na tradição da lírica, do mesmo modo que a seleção lexical busca a expressão retórica em tropos e figuras, metáforas, alegorias e símbolos, que expressem a ideologia do poeta pela construção de sentidos ao qual subjaz cosmovisão individual do eu-lírico no momento em a enunciação procura o enunciado que lhe represente. No soneto selecionado, temos uma profissão de fé calcada no solo da tradição para realizar o ineditismo que propõe.
As rimas dos quartetos se apresentam ao modo abraçado, ou opostas, seguindo para rimas encadeadas, nos dois primeiros tercetos; no terceiro terceto, o terceto “excedente”, luxurioso, tem o primeiro verso alternado com relação à estrofe anterior e o dístico final em rima emparelhada. No interior do poema, as assonâncias e a repetição de fonemas constroem musicalidade e cadência rítmica. O logos do enunciador coalesce com o pathos sensorial dos corpos dos amantes. Tanto o fundo quanto a forma com a semântica e a fôrma constituem peça única em que todos os elementos erigem edifício em que uma única peça que for diferente destruiria o poema.
* * *
Devemos buscar agora, para a literatura brasileira, tal como o sonetti italiano do século XIII, uma nova aclimatação para o soneto clássico. Não que ele tenha se esgotado. Diversos poetas do século XX, das décadas iniciais às finais, se valerem dele. Em diversos momentos, desde o romantismo, variações inesperadas no ritmo e na temática valorizaram e deram novos sentidos à fôrma. Podemos dizer que o soneto, na terra fértil da literatura brasileira, se aclimatou, se desenvolveu e ganhou variações de métrica e de tópicas no fervor carnavalesco que anima nossa tropicália efervescente, nossa antropofagia nata.
Pedindo desculpas por inserir aqui algumas tentativas de sonetos de minha autoria, explico que o faço na intenção de variar a forma do soneto clássico, trazendo à sua fôrma lições diversas da lírica e mesmo da épica.
SONETILHO À TERZA RIMA
A borboleta voa
até o pendão de trigo:
pousa, voa, revoa
e repousa no amigo:
sente-se mui segura,
como se num abrigo:
ali ela se cura,
Leta, a borboleta,
no amor que perdura;
e o trigo, sem treta,
ao vento e amores,
balouça a sua Leta:
esplendem multicores,
trigo e borboleta.
(c) Rauer 2017
A RETRATAR UMA COLEGA
Dama demente, a vil, a vadia,
declama fútil, louca e vazia,
quer descalabro novo a cada dia;
medusa, víbora na ação torta,
lhe pulsa torpe bílis na aorta,
vivo veneno no punhal que corta;
alma venal, só almeja traição,
e de inveja rasteja ao chão;
e assim, osga, se fixa na lousa:
força maligna, a sua perversão
de sempre toda crua maldade ousa
— é feliz náusea de torpe carrasco,
é fel do tempo que em cinzas pousa,
frio rio de pó, fumo, vômito e asco.
soneto © Rauer 2017
SONETO DO PERECÍVEL AMOR
Pereça o perecível amor,
morra ao fim do ciclo da paixão,
extingua o teu cortejo de dor.
Sofre do amador o coração,
sofrem os amantes dores de amor,
e o namoro torna-se, então,
sarcófago pleno de desamor,
cofre cruel do amor a morrer,
arcana arca de duro opressor.
Sôfrego amor, sempre a perder,
de luto morre, na vida que morre:
a morrer está amor ao nascer.
Na dor do amor sempre a perecer,
eis nossa sina na vida que corre.
(c) Rauer 2019
DA VIDA VIVIDA
O voo da memória voa e faz:
Nesses tempos de pandemia,
É boa lembrança que refaz
A saudade do que partia,
Emblema, dor e cicatriz,
Marca de aziaga alegria;
Define incerta matriz,
Faz da vida labor e flama,
Do rude amor o chamariz;
O relembrar voa e inflama,
Honra audaz memória ida,
Erguida no choro que clama:
Traz a mim a vida vivida,
Na morte que ora me perfaz.
Soneto (c) Rauer 2020
Peço que me eximam de comentar e reitero as escusas antes apresentadas. Ficam tão só como exemplo de variação formal e, indo do jocoso-satírico à manifestação amorosa e ao intento reflexivo, de diversidade temática.
Creio que a liberdade formal e a variedade de ethos proporcionam constante revitalização da inesgotável forma do soneto, em que a fôrma, que aparenta constranger a criação, na verdade baliza a criatividade, com a similaridade formal constituindo-se estuário para uma imensa diversidade de vocações, de topoi, de motivos e de novas formas a desenharem renovadas fôrmas em que podemos reconhecer o desenho já arquetípico do soneto.
Cabe quase tudo (ou tudo) no soneto. É necessário tão só que as novas produções tenham a força da expressão sintética que seu ethos solicita e que sempre alcancem a alta expressão literária, verbal e linguística que constituem, sempre, a exigência primeira da escrita literária.
José Saramago, em entrevista em 1978, afirmou: “Um escritor não tem o direito de rebaixar o seu trabalho em nome de uma suposta maior acessibilidade” – ou seja, o ato criador deve sempre romper auroras, iluminar poentes, ir além dos horizontes já vividos, de modo a construir novos e renovados conhecimentos, para sempre ser, em si, ao desbravar inauditas linguagens, o solo fértil do novo.
Vamos construir o novo na forma eterna do soneto?
Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia
A ARTE DE ESCREVER:
Informação importante: O Prof. Rauer ministra neste semestre, e ministrou, há alguns anos, na pós-graduação de Letras / Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, um Curso de Escrita Criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados pelo professor, vem sendo publicados no Blog da Editora Pangeia nos últimos meses e continuarão a ser publicados nas próximas semanas e meses. Além dos textos que então utilizou no curso, o professor incluiu outros, ampliando o escopo do curso para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar. (Rizio Macedo, Editor, Editora Pangeia).
AULAS ANTERIORES DESTA SÉRIE
(clique para acessar):
Apresentação – Como publicar seu livro
Aula 1 – Oito lições de Isaac Babel
Aula 2 – Segredos da ficção, por Raimundo Carrero
Aula 3 – Palahniuk: evite verbos de pensamento e outras dicas
Aula 4 – Quinze escritoras e as minúcias da Arte de Escrever
Aula 5 – 29 aforismos sobre o microconto
Aula 6 – Para escrever para crianças e jovens
Aula 7 – Síntese e concisão na escrita do haikai
Aula 8 – 33 dicas de escrita de Hemingway
Aula 9 – Técnica e engenho na escrita para tevê e cinema
Aula 10 – A arte de escrever na visão de Franz Kafka
Aula 11 – Ferramentas e dicas de Stephen King
Aula 12 – A concisão do infinito, com antologia de microcontos
Aula 13 – As lições de Camus, autor de “A peste”
A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.
https://editorapangeia.com.br/blog/
EDITORA PANGEIA:
Heloise Graciele de Freitas Fernandes co
maio 16, 2021 - 1:55 am ·Excelentes dicas sobre a escrita literária!