“Sem liberdade, nada pode existir”
Anotou Albert Camus em um ensaio sobre Walt Whitman. Referia-se ao stalinismo, tendo na bagagem a resistência ao nazismo, ao fascismo, ao colaboracionismo e a outros regimes ditatoriais que tornaram o século XX um dos períodos mais opressivos da história.
Cidadão francês, Camus nasceu em 7 de novembro de 1913 em Mondovi, na Argélia, e faleceu em um acidente de carro em 4 de janeiro de 1960, quando retornava a Paris. Filósofo e escritor, gostava de futebol e se inseria, por meio do jornalismo, na vida política. Esteve no Brasil em 1949. Professou um existencialismo muito particular, com influxos do absurdo da existência, o que não o impediu de defender o amor, a ética e a justiça.
Entre suas principais obras estão O estrangeiro (1942, romance), O mito de Sísifo (1942, ensaio filosófico), A peste (1947, romance) e O homem revoltado (1951, ensaio filosófico). Ao morrer, deixou um romance inacabado, O primeiro homem, que foi publicado em 1994 por sua filha. Quase que como uma premonição, dizia que morrer em acidente de automóvel era absurdo, justo ele que tinha o absurdo humano como tema central de sua obra. Considerava que o único de todos os temas filosóficos verdadeiramente sério era o suicídio.
Nos ensaios, Camus debate em especial o absurdo da existência, mostrando, através de exemplos modelares, que o homem do século XX, ao realizar tarefas repetitivas e não-criativas, trabalha de modo absurdo e trágico, com poucos momentos em que é consciente de sua própria vida.
Nos romances, esse quadro ─ dramático e cinza ─ ganha representação poética e ficcional.
O protagonista de O estrangeiro, após sepultar sua mãe, comete um assassinato meio sem querer, é preso e condenado à morte. Sente-se distante da humanidade que o julga. Ele narra sua história enquanto espera o momento de sua execução. Pede aos que forem assistir a sua morte ─ representantes de um mundo “indiferente” ─ que o recebam “com gritos de ódio”.
Já em A peste, para tratar do destino e da condição humana, Camus faz metáfora da II Grande Guerra ao criar uma cidade assolada pela peste bubônica, representação da França ocupada pelos nazistas. Nesse ambiente, em que a doença, espalhada por ratos, dizima os habitantes, há solidariedade em meio à solidão e a defesa libertária da revolta individual.
Em 1957, lhe foi atribuído o Prêmio Nobel, “por sua importante produção literária, que com sinceridade perspicaz ilumina os problemas da consciência humana no nosso tempo”. No discurso de agradecimento, Camus faz seu credo de escritor, no qual mostra, quase que didaticamente, que a ficção deve ser, de um lado, alegoria e metáfora contra o autoritarismo de situações opressivas, no cotidiano, e, de outro, na política, na vida pública, instrumento de engajamento contra sistemas totalitários e pretensões, digamos, bonapartistas.
Nossa lição da aula de hoje ─ sobre a ética que deve nortear o trabalho do escritor, do editor, do poeta, do ficcionista, do pensador, do filósofo, do professor ou de qualquer um de nós ao exercer uma atividade intelectual ─ está consubstanciada no belíssimo discurso com o qual Camus recebeu o Prêmio Nobel, reproduzido a seguir.
A MISSÃO DO ESCRITOR
Albert Camus
Discurso proferido ao receber o
Prêmio Nobel de Literatura
Ao receber a distinção com que a academia livremente deseja me honrar, minha gratidão é ainda mais profunda à medida em que essa recompensa excede meus méritos pessoais.
Todo homem, e com mais razão, todo artista, quer ser reconhecido como ele é ou deseja ser. Eu também o desejo. Mas, conhecendo sua decisão, era impossível para mim não comparar sua ressonância com quem eu realmente sou.
Como poderia um homem quase jovem ainda, rico apenas em dúvidas, com um trabalho em andamento, acostumado a viver na solidão do trabalho ou na reclusão de poucas amizades, como poderia eu receber, sem um certo tipo de pânico, um prêmio que o coloca de repente e sozinho em plena luz do dia, no centro de violenta luz?
Em que estado de espírito esse jovem escritor pode receber essa honra enquanto, em tantos lugares, outros escritores, entre os maiores, são reduzidos ao silêncio enquanto, ao mesmo tempo, sua terra natal experimenta uma desgraça interminável?
Sinceramente, senti esse desconforto e essa dor interna. Para recuperar minha paz íntima, foi necessário entrar em sintonia com um destino muito generoso. E como era impossível para mim igualá-lo com o único apoio de meus méritos, nada melhor veio para me ajudar do que aquilo que me sustentou ao longo da minha vida e nas circunstâncias mais opostas: a ideia que forjei da minha arte e da missão do escritor. Permitam-me, mesmo, que seja apenas um teste de reconhecimento e amizade lhes dizer, da maneira mais simples possível, qual é essa ideia.
Pessoalmente, não posso viver sem minha arte.
Entretanto, nunca coloquei essa arte acima de qualquer outra coisa. Pelo contrário, se ela é necessário regozijo para mim, é porque ela não me separa de ninguém e me permite viver, como sou, no nível de todos.
Na minha opinião, a arte não é uma diversão solitária.
É um meio de mover o maior número de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada de dores e alegrias comuns.
Assim, força o artista a não se isolar; pelo contrário, o leva, muitas vezes, como em mim, a escolher seu destino como o mais humilde e universal. E aqueles que muitas vezes escolheram seu destino como artistas porque se sentiram diferentes, logo aprendem que não serão capazes de nutrir sua arte ou sua diferença, exceto confessando sua semelhança com todos.
O artista é forjado nessa perpetuidade de ir e vir de si mesmo para os outros, equidistante entre a beleza, sem a qual não pode viver, e a comunidade, da qual não pode se destacar. É por isso que os verdadeiros artistas nada desprezam: eles se forçam a compreender em vez de julgar.
O verdadeiro escritor tem uma escolha a fazer neste mundo, e não pode ser senão aquela de uma sociedade na qual, em acordo com a palavra de Nietzsche, não reinará mais o juiz mas o criador, quer seja ele trabalhador ou intelectual.
Por esse motivo, o papel do escritor é inseparável de árduos deveres. Por definição, ele não pode colocar-se a serviço de quem faz história, ele está a serviço dos que a sofrem. Se não o fizesse, ficaria sozinho, privado de sua arte.
Todos os exércitos de tirania, com seus milhões de homens, não o tiram da solidão, mesmo se o escritor consentir em acomodá-los e, acima de tudo, se ─ como artista ─ consentir. Mas o silêncio de um prisioneiro desconhecido, abandonado do outro lado do mundo, é suficiente para tirar o escritor de sua solidão, toda vez que, pelo menos, ele consegue, em meio aos privilégios de sua liberdade, não se esquecer desse silêncio, e ─ para que sua vida valha a pena ─ tenta buscá-lo e fazê-lo soar com todos os seu recursos de escritor e de artista.
Nenhum de nós é grande o suficiente para essa vocação.
Em todas as circunstâncias de sua vida, sombrias ou provisoriamente famosas, fascinadas pela tirania ou livres para se expressar, o escritor pode encontrar o sentimento de uma comunidade viva, que o justifica com a condição de aceitar, na medida do possível, as duas tarefas que constituem a grandeza de seu cargo: o serviço da verdade e o serviço da liberdade.
Como sua vocação é agrupar o maior número possível de homens, ele não pode se acomodar à mentira e à servidão que, onde reinam, fazem a solidão proliferar.
Quaisquer que sejam nossas fraquezas pessoais, a nobreza de nossa profissão estará sempre enraizada em dois imperativos difíceis de manter: recusa em mentir sobre o que é conhecido e resistência à opressão.
Por mais de vinte anos de uma história insana, perdida e sem recurso, como a de todos os homens da minha idade, nas convulsões do tempo, só fui sustentada pelo profundo sentimento de que a escrita é uma honra hoje, porque esse ato obriga à liberdade ─ e obriga para mais do que apenas escrever.
Essencialmente, escrever me forçou, como eu era e de acordo com minhas forças, a compartilhar vidas com todos aqueles que viveram minha mesma história, infortúnio e esperança. Aqueles homens ─ nascidos no início da Primeira Guerra Mundial, que tinham vinte anos para estabelecer, ao mesmo tempo, o poder de Hitler e os primeiros processos revolucionários, e que, para completar sua educação, mais tarde enfrentaram a guerra na Espanha, a segunda guerra mundial, o universo dos campos de concentração, a Europa de tortura e prisões ─ esse homens, entre os quais estou, são forçados a orientar seus filhos e suas obras em um mundo ameaçado de destruição nuclear.
Eu acho que ninguém fingirá pedir que sejamos otimistas. Até pensar que devemos entender, continuando a lutar contra a opressão e a tirania, o erro daqueles que, devido a um excesso de desespero, reivindicaram leis e desonras e se lançaram nos niilismos da época.
Ocorre que a maioria de nós, no meu país e no mundo inteiro, rejeitou o niilismo e se dedica à conquista da legitimidade.
Nesse tempo, nos foi necessário forjar uma arte de viver em tempos catastróficos para nascer uma segunda vez e depois lutar cara a cara contra o instinto de morte que se agita em nossa história. Eu acho que ninguém fingirá pedir que sejamos otimistas.
Até chegar a pensar que devemos entender, continuando a lutar contra eles, com o erro daqueles que, devido a um excesso de desespero, justificaram a lei e a desonra e se lançaram nos niilismos da época. Mas acontece que a maioria de nós, no meu país e no mundo inteiro, rejeitou o niilismo e se dedica à conquista da legitimidade.
Os homens desse tempo tiveram que forjar uma arte de viver em tempos de desastre, nascer uma segunda vez e depois lutar, com rostos abertos, contra o instinto de morte em ação em nossa história. Sem dúvida, cada geração acredita que está destinada a refazer o mundo. A minha sabe, no entanto, que ela não poderia fazê-lo, mas sua tarefa talvez seja ainda maior: é a de impedir que o mundo se desfaça.
Somos herdeiros de uma história corrompida que mistura revoluções decaídas, técnicas que enlouqueceram, deuses mortos e ideologias extenuadas, em que poderes medíocres, que podem destruir tudo, não sabem convencer; em que a inteligência se humilha ao serviço do ódio e da opressão ─ essa nossa geração teve que, em si e ao seu redor, restaurar, partindo de suas amargas negações, um pouco do que constitui a dignidade de viver e morrer.
Diante de um mundo ameaçado de desintegração, no qual nossos grandes inquisidores arriscam estabelecer os reinos da morte para sempre, o escritor sabe que deve, numa espécie de corrida louca contra o tempo, restaurar entre as nações uma paz que não é a da servidão, reconciliar novamente o trabalho e a cultura e reconstruir com todos os homens uma nova arca da aliança. Não é certo que esta geração possa finalmente cumprir essa imensa tarefa, mas a verdade é que, em todo o mundo, ela já fez e mantém sua dupla aposta em favor da verdade e da liberdade.
O escritor do meu tempo que sou sabe que chegou o momento de saber como morrer sem ódio pelo mundo que construímos.
Essa geração deve ser acolhida e incentivada onde quer que seja encontrada e, acima de tudo, onde se sacrifica. E por esse motivo, com a certeza de sua aprovação, deveria recusar hoje a honra que acabam de me fazer.
Ao mesmo tempo, depois de expressar a nobreza da profissão de escritor, devo colocar o escritor em seu verdadeiro lugar, sem outros títulos além daqueles que compartilha com companheiros de luta, vulneráveis, mas tenazes, injustos, mas apaixonados pela justiça, realizando seu trabalho, sem vergonha ou orgulho, à vista de todos, sempre atento à dor e à beleza, sempre condenado, em suma, a extrair de seu duplo ser as criações que tenta obstinada e teimosamente construir diante do movimento destrutivo da história.
Quem, depois deste nosso tempo, pode esperar soluções prontas e belas lições morais?
A verdade é misteriosa, ilusória, e você sempre deve tentar conquistá-la. A liberdade é perigosa, tão difícil de viver quanto exaltante. Devemos avançar rumo a esses dois fins, dolorosa, mas resolutamente, descontando antecipadamente nossas falhas ao longo de um caminho tão longo.
Que escritor ousaria, em consciência, proclamar-se pregador da virtude? Quanto a mim, preciso dizer mais uma vez que não sou assim.
Eu nunca fui capaz de abandonar a luz, a felicidade de ser, a vida livre em que cresci. Mas, embora essa nostalgia explique muitos dos meus erros e deficiências, sem dúvida me ajudou a entender melhor minha profissão de escritor e a permanecer decididamente ao lado de todos esses homens silenciosos, que não podem suportar o mundo, a vida feita de memória ou do retorno breve da felicidade e da liberdade.
Reduzido, dessa maneira, ao que realmente sou, aos meus verdadeiros limites, às minhas dívidas e à minha fé difícil, sinto-me mais livre para destacar, ao concluir, a magnitude e generosidade da distinção que a Academia acaba de me conceder.
Sinto-me também mais livre para recebê-la como uma homenagem a todos aqueles que, partilhando do mesmo combate, não receberam nenhum privilégio e, em vez disso, conheceram infortúnios e perseguições. Resta-me apenas agradecer, do fundo do meu coração, e fazer publicamente, como testemunho de gratidão pessoal, a mesma e antiga promessa de fidelidade que todo verdadeiro artista faz para si mesmo, silenciosamente, todos os dias.
Albert Camus,
na Academia Sueca, em
10 de Dezembro de 1957;
Original, aqui.
Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia
A ARTE DE ESCREVER:
Informação importante: O Prof. Rauer ministra neste semestre, e ministrou, há alguns anos, na pós-graduação de Letras / Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, um Curso de Escrita Criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados pelo professor, vem sendo publicados no Blog da Editora Pangeia ao longo dos últimos meses e continuarão a ser publicados nas próximas semanas e meses. Além dos textos que então utilizou no curso, o professor incluiu outros, ampliando o escopo do curso para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar. (Rizio Macedo, Editor, Editora Pangeia).
Nota da Editora:
Em breve, a Editora Pangeia lançará ─ para acesso gratuito ─ uma seleção de textos, ficcionais e poéticos, contemporâneos e clássicos, com o tema da peste, como forma de reflexão sobre os terríveis tempos de Covid-19 pelos quais passamos.
AULAS ANTERIORES DESTA SÉRIE
(clique para acessar):
Apresentação – Como publicar seu livro
Aula 1 – Oito lições de Isaac Babel
Aula 2 – Segredos da ficção, por Raimundo Carrero
Aula 3 – Palahniuk: evite verbos de pensamento e outras dicas
Aula 4 – Quinze escritoras e as minúcias da Arte de Escrever
Aula 5 – 29 aforismos sobre o microconto
Aula 6 – Para escrever para crianças e jovens
Aula 7 – Síntese e concisão na escrita do haikai
Aula 8 – 33 dicas de escrita de Hemingway
Aula 9 – Técnica e engenho na escrita para tevê e cinema
Aula 10 – A arte de escrever na visão de Franz Kafka
Aula 11 – Ferramentas e dicas de Stephen King
Aula 12 – A concisão do infinito, com antologia de microcontos
A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.
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