A ARTE DE ESCREVER 10 – Kafka e a arte de escrever

Kafka, um autor visceral, de uma escrita visceral, de uma entrega dramática para a escrita, ao mesmo tempo que vivencia uma negação quase que completa de si mesmo e do que escreveu.

Permitam-me um pequena narrativa biográfica prévia.

Aos quinze anos, o jovem sorumbático, misantropo, esquizóide e algo violento na defesa da timidez que eu era se viu castigado pelo Pai com uma temporada de férias na casa de parentes com os quais tinha pouca ou nenhuma intimidade. Na cidade maior, um mês para reflexão e uns trocados: “Parece que há uma livraria na avenida…” Era um sebo, e na primeira visita a ele ─ por artes misteriosas ─ o título de um livro envelhecido e amarelado não desgrudou-me do olhar e por fim da posse: Cartas a Milena, por um tal Kafka, nome então sem nenhuma ressonância, ao menos na lembrança de agora.

Quantas vezes li o livro nessas férias? O bastante para um parente me dar mais uns trocados, para que eu buscasse um outro livro.

Assim descobri a escrita fenomenal, a mente absolutamente singular e o modo particular de vivenciar o amor e a literatura de Franz Kafka.

Seja por aforismos, seja em contos muito curtos, seja nas novelas ou nos romances, Kafka é a síntese projetada do absurdo em que a humanidade enveredaria no século XX. É autor seminal, inescapável, dos maiores que o sapiens sapiens produziu, justamente por mostrar quão pouco sapiens há nesse sapiens.

Kafka não escreveu metodicamente sobre a arte de escrever, mas em diários e em cartas fez reflexões que nos permitem discernir sua tortuosa ligação com a vida e com a literatura. E se há um escritor cuja vida seja inteiramente entrelaçada com sua literatura, é a de Franz Kafka. Ei-lo, em novembro de 1914, em meio à escrita do romance O processo:

“Não posso seguir escrevendo. Me encontro no limite definitivo, diante do qual devo permanecer novamente por décadas, para começar uma vez mais uma nova história que ficará inconclusa. Este destino me persegue. Volto a estar frio e insensato, só permanece o senil amor pelo descanso total.”

Das muitas reflexões de Kafka sobre a escrita, sobre a literatura, sobre a ligação da vida com a literatura, apresento a seguir alguns fragmentos. Recollho-as sem as datas e circunstâncias, uma vez que nossa intenção é a reflexão atemporal sobre a arte da escrita.

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Escrevi essa história […] em uma só noite, das dez da noite às seis da manhã. Foi-me difícil tirar minhas endurecidas pernas de sob a escrivaninha após tantas horas de trabalho. Isso depois do terrível esforço e da alegria de ver como a história ia se desenvolvendo, como ia avançando por sobre as águas. Várias vezes nessa noite, minhas costas arquearam sob meu peso. Você pode dizer todas as coisas, tudo: há um grande incêndio, no qual as ocorrências mais estranhas são consumidas e renascem. Atrás da janela, ficou azul. Um carro passou. Dois homens atravessaram a ponte. Às duas, verifiquei o relógio pela última vez. Quando a empregada passou pela antecâmara, escrevi a última frase. À luz do dia, apaguei a lâmpada. Dói-me o coração. O cansaço desaparece. Trêmulo, chego ao quarto das irmãs. Leio em voz alta. Antes, com uma mesura diante da empregada, disse: “Escrevi até agora”. A cama, imaculada, como se a tivessem acabado de arrumar. A convicção confirmada de que, ao escrever meus romances, me encontro em desonra. Só assim se pode escrever, nesse contexto, com total abertura do corpo e da alma. A manhã toda na cama. Os olhos sempre claros. Muitos sentimentos durante a escrita, como a alegria de estar fazendo algo bonito […].

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[…] Outra coisa importante: a última palavra da penúltima frase há de dizer “precipitou-se para baixo” e não “caiu”.

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É mais poesia que conto, de modo que necessita de espaço livre em seu entorno.

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É o fantasma de uma noite [o texto que escrevi]. Um fantasma. Isso é só uma constatação, e ao tê-la sei não haver alcançado ao fantasma.

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Contra minha intranquilidade, me aferro a minha novela, como a estátua de um monumento que megulha o olhar na distância se agarra ao pedestal.

Agora [cerca de um mês após a anotação acima] leio nas cartas de Flaubert: “Meu romance é a rocha na qual estou suspenso, e nada sei do que ocorre no mundo”. Passagem parecida à minha anotação anterior.

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Ao fim e ao cabo não pode existir nenhum lugar mais bonito para morrer, mais digno da desesperação total, que uma novela escrita por mim mesmo.

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Aqueci-me muito com a leitura, e se pela tarde não houvera deambulado muito pelo caminho, quem sabe poderia ter-me assentado ao escritório e escrito algo decente, capaz de arrancar-me das profundezas em que estou mergulhado para alçar-me às alturas. Mas não faço nada, a não ser acomodar-me bem seguro e por bastante tempo antes de escrever, de modo que seguirei sendo uma praga para mim, para você e para o mundo.

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Estar só é secundário. Não desenhei as personagens. Narrei uma história. São imagens, somente imagens. […] Fotografa-se as coisas para que as afastemos da mente. Minhas histórias são como um fechar de olhos.

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Panfletos políticos se dirigem a destinatários irreais. Nação e classe operária são generalizações abstratas, conceitos dogmáticos, fenômenos nebulosos, tangíveis somente por operação linguística. São conceitos reais somente como criações da linguagem. Sua vida está presa ao falar, em um mundo íntimo que não é o mundo externo do homem. Só é real o homem concreto, real, o outro que Deus coloca em nosso caminho e a cujos atos estamos diretamente expostos. […] Todo homem concreto é um mensageiro do mundo externo. As abstrações são somente deformações dos sofrimentos próprios, fantasmas saídos dos calabouços do mundo interno.

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Para o homem, a vida natural é a vida humana. Nada mais vê. Nada mais além quer ver. A existência humana é muito dolorida, por isso desejamos nos desprender dela pelo menos em fantasia.

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O sonho deixa ao descoberto a realidade, depois da qual permanece a imaginação. Isso é o terrível da vida e o comovente da arte.

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Antes, com uma única palavra oposta à corrente do momento, eu estava instantaneamente na direção contrária ─ agora, apenas olho para mim e permaneço como sou.

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Meu livro, livreto, caderninho foi felizmente aceito. Mas não estou satisfeito: é preciso escrever coisas melhores. […]

Sou tão feliz ao pensar que meu livro está em suas doces mãos, por muitas que sejam as críticas que ele mereça (só a brevidade é impecável).

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Estou escrevendo há um par de dias. Oxalá siga assim. Hoje já não estou tão protegido e preso ao trabalho como nos últimos dois anos. Adquiriu um sentido o que faço. Minha vida de solteirão, vazia e tonta, tem sua justificativa. Mantenho novamente um diálogo comigo mesmo e não me disperso mirando o mais completo vazio. Só por este caminho encontrarei uma melhoria para mim.

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Eis a questão! Max Brod, Feliz Weltsch, todos os meus amigos se apoderam sempre de algum escrito meu e me dão logo a surpresa de um contrato editorial. Não desejo produzir-lhes incômodos, de modo que no final se publicam coisas que não passam de apontamentos pessoais ou lúdicos. Se imprimem e vendem provas de minhas debilidades porque meus amigos, com Max Brod à frente, se empenham em converter isso em literatura, e não tenho forças para destruir tais testemunhos de solidão.

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Começar a escrever um romance curto nos apresenta sempre um início ridículo. Parece impossível que esse novo organismo, ainda inacabado, sensível em todos os lugares, consiga permanecer na organização existente do mundo, que tende, como qualquer organização existente, a se fechar. Mas aqui esquece-se que o romance curto, caso seja justificado, carrega sua própria organização, embora ainda não tenha sido totalmente desenvolvido; nesse aspecto, o desespero é injustificado; da mesma maneira, os pais teriam que se desesperar diante do bebê, porque esse ser insignificante e ridículo não é o que eles queriam trazer ao mundo. Agora, você nunca sabe se o desespero que sente é justificado ou não. Se tal reflexão pode gerar certo estresse, a ausência da experiência já me prejudicou.

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O que para uns é um saco de lixo ou um cachorro, para outros é um presságio. Sempre há algo que supera nosso cálculo.

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A história recebeu um novo título: “Josefina, a cantora ─ ou ─ O povo dos ratos”. Os títulos, com “ou”, não são bonitos, mas no presente caso têm um sentido especial. Tem algo de balança.

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Entre as milhares de linhas que lhe dou, talvez haja cerca de dez que eu ainda possa tolerar; […] em vez da revelação esperada, envio-lhe rabiscos infantis… A maior parte dessas linhas são repulsivas […]; acho impossível ler isso e fico feliz se você suportar alguma página de leitura isolada. Mas você deve se lembrar que eu comecei a escrevê-las em uma época em que se utilizava uma linguagem opulenta e grandiloquente; não houve tempo pior para iniciar o aprendizado de escrever.

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Escrevo mais quente e mais vivo, porque estou seguro de que, se é “belo o sentimento independente, produz ainda mais eficácia o sentimento que contesta”.

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Quando não há necessidade de distrair a narrativa com floreios estilísticos, a tentação para fazê-lo é ainda mais forte.

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Não produzi uma única linha que reconheço como minha, mas, pelo contrário, apaguei tudo o que escrevi […]. Meu corpo inteiro me avisa a cada palavra; cada palavra, antes que eu a escreva, primeiro olha ao seu redor. As frases quebram-se dentro de mim e eu as vejo em suas entranhas, para então as escrever, imediatamente.

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Minha felicidade, minha habilidade e qualquer possibilidade de ser útil de alguma forma se encontra desde sempre na literatura. Com a literatura tenho vivido situações próximas a estados visionários, nos quais vivo inteiramente as ilusões, chego aos meus limites e aos limites do humano.

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Quando começo a escrever depois de algum tempo de inatividade, pego as palavras como se viessem do ar vazio. Quando agarro uma palavra, só conto com ela e então todo o trabalho principia.

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Não devo supervalorizar o que escrevi; ao supervalorizar o que já escrevi, apenas faço o que quero escrever inatingível.

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Meu modo de vida é organizado apenas para escrever; e se sofrer alguma alteração, é para atender melhor ao ofício de escrever ─ o tempo é curto, pequena é minha força, o escritório é um terror, a casa barulhenta, então tenho que sobreviver a tudo isso enquanto não consigo uma vida reta e bonita.

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Amanhã começo novamente a escrever. Com todas as minhas forças. Há uma mão inflexível que me rouba da vida quando não escrevo.

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Não escrevo nada autêntico, pois o irreal se empenha em obscurecer a mais formosa realidade, e eu tenho que afugentá-lo com a ajuda dos meus escritos. […] Tampouco me entendo comigo mesmo, exceto quando estou escrevendo. […] Tudo que faço é só um engano para a solidão. […] É necessário escrever na obscuridade, como em um túnel.

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Escrevo diferente do que falo, falo diferente do que penso, penso diferente do que deveria pensar; e assim sucessivamente até à mais profunda obscuridade.

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Escrever é uma forma de oração. […] O escritor tem uma missão profética. […] A palavra correta, dirige; a falsa, seduz.

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Escrever é um doce e maravilhoso prêmio.

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Kafka, vida e obra entrelaçadas entrega total: literatura é destino e se não for destino, deve se tornar, para merecê-la.

Ao fecho da 10ª. lição desta série da Editora Pangeia, fazemos uma pausa de três semanas ─ utilize essas semanas para repassar todas as aulas e exercitar-se a partir das diversas perspectivas propostas a cada aula pelos diferentes autores que invocamos. Da diversidade, da multiplicidade, da variedade antagônica ou complementar, delineie a sua voz, molde o seu perfil de escrita, fortaleça sua identidade autoral.

Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia

Informação importante: O Prof. Rauer ministrou, há alguns anos, na pós-graduação de Letras / Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, um Curso de Escrita Criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados pelo professor, vem sendo publicados e continuarão a ser replicados no Blog da Editora Pangeia ao longo das próximas semanas e meses. Além dos textos que então utilizou no curso, o professor incluiu outros, ampliando o escopo do curso para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar. (Rízio Macedo Rodrigues, Editor, Editora Pangeia).

 

AULAS ANTERIORES DESTA SÉRIE:

Apresentação   Aula 1   Aula 2   Aula 3   Aula 4   Aula 5   Aula 6   Aula 7   Aula 8   Aula 9 

 

A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.

https://editorapangeia.com.br/blog/

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Comentários Recentes

  • Rauer Rodrigues
    setembro 22, 2019 - 1:01 pm · Responder

    Olá!
    Com publicações semanais, a Série A ARTE DE ESCREVER vem se desdobrando aqui no blog da Editora Pangeia, trazendo a visão sobre literatura e dicas para a escrita de autores os mais diferentes entre si.
    Para estabelecer diálogo sobre as publicações, fique à vontade para nos contatar pelas redes sociais ou – preferencialmente – nos comentários deste blog.
    Um abraço grande a todos os leitores, e até a próxima publicação.
    Rauer.

  • Rauer Ribeiro Rodrigues
    março 28, 2020 - 10:42 pm · Responder

    Obrigado, Luciano. Em breve, teremos novo grupo com mais dez abordagens de autores com suas lições e ensinamentos sobe a arte de escrever.

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