Uma voz personalíssima que todos devem ler

Uma das maiores conquistas que um escritor pode almejar é desenvolver uma linguagem única que o diferencie dos outros e que ao mesmo tempo defina sua personalidade literária. Não é tarefa fácil, mesmo escritores consagrados não adquiriram essa marca. Por conta disso, pode-se dizer que Alciene é uma escritora privilegiada, faz parte de um seleto grupo de prosadores, como Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Teles, Rubem Fonseca, Adalgisa Nery e poucos mais. Outro mérito é desenvolver essa marca narrativa em uma produção, por enquanto, esparsa, publicada sem pressa desde o final da década de 1970.

O volume em questão é uma mistura de contos inéditos, contos “perdidos” em suplementos e em revistas literárias e contos publicados em volumes esgotados há muito. O eixo temático, que se advinha no título, é uno e múltiplo: a mulher. De forma libertadora, Alciene aborda várias e variadas mulheres, de várias idades e amores, como canta Martinho da Vila. Encontramos narrativas que desdobram e dialogam com alguns estereótipos femininos sem nunca cair na armadilha de reproduzi-los tal e qual a sociedade patriarcal os molda: a mulher traída, a traidora, a menina inocente, a masculinizada, a madura, a trágica e tantas outras.

Um aspecto muito interessante da edição é que, além da beleza gráfica, ela fornece dados muito importantes da autora que vão além da usual biografia: como posfácio, há um histórico dos contos, situando data(s) de escrita e ─ quando é o caso ─ de publicação(ões). Saber quando cada texto foi escrito nos permite esboçar a trajetória de Alciene e ver, além do conteúdo, eventuais mudanças na sua maneira de escrever e de narrar.

Os contos mais recentes datam de menos de um ano e, como seria de se esperar, são aqueles que trazem de maneira mais pungente e lapidado o seu peculiar estilo. Para nós, a jóia da coroa é a narrativa curtíssima que abre o livro: “Independência e morte”. Nele, a autora retoma mote já desenvolvido no ótimo “Ave Maria das Graças Santos”, de 1984: o feminicídio.

Apesar de ser um conto curto e muito eficiente narrativamente, o conto dos anos oitenta foi superado pelo sucessor: em “Independência e morte”, a escritora atinge a mistura perfeita entre sua típica linguagem sintaticamente truncada, de sintaxe entrecortada e vocabulário muito pessoal (uma mescla de intelectualidade e sertão mineiro, das geraes), com a precisão e concisão que só os melhores contistas alcançam realizar. A catarse com essas narrativas é inevitável em época em que ainda testemunhamos, de modo tão claro, essas mesmas tragédias.

Mas não é só de tragicidade que vivem (e morrem) as mulheres de Alciene Ribeiro: a despeito de tudo, de todos e dos tolos, mesmo os que se julgam super-homens, elas se mantêm sublimes e sublimadoras de sua própria condição. Como a protagonista de “Transa”, senhora de si que negocia com um garoto de programa uma noite de amor, tão independente quanto carente, em uma narrativa composta apenas de diálogos que nos remete ao melhor de seu conterrâneo, Luiz Vilela. Não é qualquer escritor que emula tema, modo de narrar, topografia ou qualquer aspecto de um escritor consagrado e faz uma obra genuinamente sua, original, forte e densa – Alciene Ribeiro, no Mulher explícita, faz isso de maneira magnífica, e acrescenta à literatura uma voz personalíssima, que a faz juntar-se ao rol dos autores da literatura brasileira que todos devem ler.

 

Ronaldo Vinagre Franjotti (GPLV).

Professor no Ensino Fundamental na Rede Pública Estadual de Mato Grosso do Sul e doutorando em Estudos Literários na UFMS.

Comentários Recentes

  • Rauer Rodrigues
    setembro 22, 2019 - 12:32 pm · Responder

    Olá!, bom dia!
    Para mais informações sobre Alciene Ribeiro, nós, do GPLV, Grupo de Pesquisa Literatura e Vida, mantemos um blog com informações biográficas, bibliográficas e de recepção crítica de e sobre a escritora.
    Eis o link para o blog: http://gpalcieneribeiro.blogspot.com/.
    Venha conhecer nosso trabalho, que nasce na universidade mas é vocacionado para o público em geral.

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