QOHELET, de Rauer

QOHELET, de Rauer, é  uma atualização sensível, amorosa, transcendente, primordial, belíssima e refinada dos Cantares – o Cântico dos Cânticos – e do Eclesiastes, dialogando com outros livros da tradição sapiencial e da lírica perene e universal, de Hesíodo ou de Enheduanna ao choro de um bebê ou ao balbucio da namorada ao seu primeiro amado no portão de uma casa suburbana, na periferia de uma inclemente metrópole, ontem à noite.

As ilustrações são de Willia Katia Oliveira, poeta e designer. No desenho em destaque, o poeta ouve Qohelet narrar sua trajetória na busca do amor e do conhecimento.

Dito isso a título de apresentação, entrevistamos o autor no momento em que as Edições Dionysius, o selo de literatura da Pangeia Editorial, lança a terceira edição do QOHELET.

Para saber mais sobre o livro, clique AQUI.

BLOG DA PANGEIA – Rauer, por favor, em duas ou três frases, nos defina o QOHELET.

RAUER – Ah, o QOHELET é… – [o poeta abre um sorriso silencioso, algo sardônico] –, …em detalhes, é uma edição lindíssima, de um poema que me foi, na escrita, e que me é, hoje, na releitura, impactante!

Uau… Vamos em frente: você menciona que se trata de um poema; no entanto, no livro consta “narrativa lírica” – trata-se de poesia ou de narrativa?

Trata-se, antes de tudo, de literatura, literatura que bebe em fontes inarredáveis de nosso passado cultural e literário. É lírica de invenção e é um texto ficcional, é um diálogo e é uma reflexão sobre o ser e o estar humano, desse humano que desceu das árvores nas savanas e saiu das grutas pré-históricas para dominar a natureza ao ponto de obter a possibilidade nuclear de destruir o planeta. Tem a forma da terza rima, que dir-se-ia dantiana; tem três cantos que emulam certa dialética em uma filosofia toda particular – é, pois, uma narrativa que se dá em diálogo, com uma personagem que narra a sua busca do conhecimento através do amor e do erotismo, da reflexão e da oração, do intertexto com o pensamento pré-socrático, com as lições do Eclesiastes e do Cântico dos Cânticos e a incorporação de reflexões sapienciais de poetas, de eremitas, de santos e de hereges. Tentei fazer com que forma e conteúdo copulassem entre si, no amálgama do significado ao significante, propiciando que coalescesse a inspiração profética ao léxico e à sintaxe. QOHELET é um canto de amor, lírico e épico, é murmúrio sussurrado e excitação, febre, explosão orgiástica, é prece meditativa e é vida erótica por todos os poros.

Por que uma 3a. edição do QOHELET quando, segundo informações biográficas que constam no livro Ab ácido: estórias, você tem diversos livros inéditos na gaveta e no computador?

RAUER – Uai!, tá aí um mistério, né? Mas só parece mistério, porque o QOHELET teve uma primeira edição caseira, somente para amigos íntimos, e uma outra edição, aqui mesmo na Dionysius / Pangeia, de baixa tiragem, que circulou somente entre pessoas conhecidas. Portanto, de modo mais amplo, essa será de fato uma primeira edição. Um outro aspecto: escrevi o poema após concluir minha tese e à espera da defesa. Foi um tempo relativamente longo, de ao menos cinco meses, de expectativas novas e de mudanças existenciais reais, e foi ao refletir sobre o que vivera até então e projetar o que eu provavelmente passaria a viver, que Qohelet, a personagem, “ganhou vida”. Por fim, sendo a 1a. edição uma publicação do poema feita para ser entregue aos amigos e aos membros da banca de defesa, ainda no quente da escrita do poema, não foi feita uma obrigatória releitura de apuramento, defeito de que também padece a 2a. edição, quase que uma replicação daquele texto original. Já agora, para esta 3a. edição, fiz revisão detida, ajustei imperfeições, conferi verso a verso o ritmo, a métrica, as assonâncias, as rimas. Eu diria que essa poderia até ser considerada a primeira edição de fato do QOHELET, não fosse o histórico narrado.

Mas nos conte também das inspirações pouco óbvias no QOHELET: quais são elas?, de que modo elas foram deglutidas antropofagicamente?

São mencionadas, nos comentários críticos ao poema, a presença do Eclesiastes e a retomada do Cântico dos Cânticos… são intertextos evidentes. Não parecem óbvias as presenças do Gênesis e do Apocalipse, que estão, penso eu, em subtexto, quase que em uma tríade que molda uma metáfora do humano: o nascimento, a dor, a morte; é nesse latejar implícito que se impõe a busca do amor a partir do conhecimento e a busca do logos a partir do erotismo. QOHELET me foi um esforço físico monumental. O poema foi escrito em muitas noites febris e sanguíneas, em madrugadas excitantes em que a poesia pulsava procurando as palavras que a expressariam. Os versos fluíam lentos e majestosos, em sopro de épica que forjava uma lírica. Há, no QOHELET, ao menos penso que há, uma deglutição antropofágica da civilização hebraico-helênica-romana-cristã, o que talvez não seja óbvio, e o resultado se veste de esperança, embora seja terrível o retrato do humano que resulta da leitura.

De que forma o QOHELET chega à 3a. edição?

Na melhor forma possível: revisado minuciosamente, corrigidos erros de revisão falha nas edições anteriores, e principalmente com ajustes que desde sempre percebi que devia fazer, mas que não fizera. Além disso, se a 1a. edição tem o charme do livrinho caseiro com pouquíssimos exemplares e a 2a. ganhou um estudo sensível e potente, da Cris Guzzi, essa nova edição tem as ilustrações da Willia Katia Oliveira, com traços leves, realistas e transcendentes, que estão espetaculares, dialogando com o texto, lendo o texto… os desenhos   se amalgamam ao poema, constituindo um hino de amor entre poesia e imagem, similar ao texto poético-narrativo, que é um amálgama entre verbo e corpo.

Mas agora o posfácio é outro…

Sim, o da segunda edição, “A voluptuosidade artística: a presença do erotismo na escrita de QOHELET, de Rauer”, realça que o poema “fez, do corpo, o ofício de escrever, e do escrever, o ofício do corpo”, perfazendo uma “copulação entre o sagrado e o profano”. Assim, destacava a interface “literatura e erotismo” com a qual nascia a Coleção Eros-Poesia. Era uma súmula da libertação, a súmula da sincronia de diferentes momentos históricos, quase que uma junção entre os ideias libertários dos anos 1960, a afoita busca de prazer da década de 1980 e o hedonismo luxurioso – com certo retorno de moralismo pecaminoso – do início dos anos 2000. Já agora, a opção foi por estudo voltado ao intertexto, à retomada transgressora de múltiplas evocações, e por isso temos de posfácio o estudo “De  ֹקֶהֶלת  a Qohelet, de Rauer”, assinado por Pauliane Amaral e Pedro Germano Leal [Brown University, Providence, Rhode Island, EUA]. É um estudo denso, filológico, que capta nuances microscópicas e propõe uma compreensão ampla de um outro aspecto do poema. Estou muito feliz por essa escolha da Editora.

“O primado da melhor literatura, em todos os tempos, se dá quando o escritor deixa o texto falar por si, sem esvanecer a dor latejante de humanidade para as contingências do autor.”
(Rauer, sobre Qohelet).
Confira: AQUI e AQUI.

Qual pesquisa histórica você fez para escrever o QOHELET?

Em primeiro lugar, à trajetória de leitor compulsivo e onívoro desde ao menos os oito anos. Depois, às experiências com teatro amador, em Ituiutaba, na adolescência, e na transição para universitário, em Sampa. Na sequência, os quatro anos cursando Filosofia na USP. Saindo do casulo, os anos de jornalista no retorno a Ituiutaba, cidade natal, nos sertões do cerrado goiano-paulista do Triângulo Mineiro. Após isso, os cursos de Estudos Sociais e História e os breves meses em um frustrante curso de Letras, para enfim fazer especialização em Literatura, mestrado-doutorado em Estudos Literários e pós-doutorado em Literatura Comparada. Mais do que a trajetória de estudos, o trabalho de livreiro e editor e, em especial, os sucessivos casamentos, os filhos, a angústia de integrar – no Brasil – um repulsivo sistema sócio-econômico feudal-capitalista-selvagem, constituem o ethos que gerou o QOHELET. O poema, pois, se inscreveu em mim, em meu corpo, em meu ser sensitivo e pensante, ao longo de quase cinco décadas de vida. É a suma dessa vida.

Quer dizer que um pouco antes dos seus cinquenta anos já fechou o significado da sua existência?

Oh!, não!, e espero ter a oportunidade de um novo exercício similar a este em algum tempo futuro, seja nas breves páginas de um conto, seja no rio em expansão de um romance, seja em uma novela picaresca, seja em um novo e diferente poema, seja mesmo em um haikai ou em um microconto. Isso, claro, se da Guerra com a invasão da Ucrânia não chegarmos à extinção da vida no planeta.

De que modo você avalia essa 3ª edição de QOHELET, sobretudo em termos de ousadia formal e estrutural?

É mais um belíssimo trabalho da Pangeia Editorial, que em cada um de seus selos – Dionysius, de literatura, Pangeia, para livros acadêmicos, e Saruê, infantojuvenil – vem imprimindo, a cada novo livro, uma surpresa de acabamento, de preparação editorial, de elaboração visual. Os livros algumas vezes demoram a ficar prontos, mas quando nos chegam à mão, são obras muito bem cuidadas, de muito bom acabamento, quase impecáveis. A diagramação e as ilustrações desse QOHELET estão um primor, e agradeço à editora por esse cuidado e à Willia Katia Oliveira o capricho da arte-final sensível, expressiva e linda. Vejo ousadia, bom-gosto, apuro… tal como pretendi e espero ter realizado no poema. Foi-me prometida uma pequena joia, e eu confirmo que tenho em mãos um livro que é uma pequena joia.

Há uma importante confluência de gêneros literários em seu estilo de escrever: microconto, haikai, poesia, conto, novela, romance… – com qual deles se identifica mais?

Sou leitor de todos os gêneros; ao escrever, busco a melhor forma para o que pretendo expressar tendo em vista conteúdo e modo de escrever. Bebo sempre na lição dos grandes autores do passado e, por antagonismo, na lição dos autores menores, com textos falhados, para fugir dos erros que eles cometeram. Imagino que Safo, Virgílio, Machado de Assis, Tchekhov, André Gide, Mansfiel, Ernest Hemingway e Murilo Rubião, entre outros, depende do momento, sejam os meus leitores… e então imagino o que eles diriam do que escrevi, quais críticas fariam. Procuro sempre alcançar o máximo de polissemia com o mínimo de palavras. Coloco-me sempre desafios expressivos, desafios temáticos, desafios de ir além do que já conheço e do que já fiz. Escrever é luta renhida, eu diria, em paráfrase a Gonçalves Dias.

Os anos que separam a 1ª edição da de hoje foram preenchidos com diferentes produções literárias e acadêmicas: de que modo essa trajetória influencia a atual edição?, houve um amadurecimento teórico e da prática do escritor nesse período?

O que mudou nos últimos dezesseis anos é que fiquei mais compreensivo com as pessoas em geral no que cada um de nós tem de falível e precário, e me tornei mais exigente quanto ao que é a literatura, quanto à qualidade intrínseca do texto literário. Passei também a perceber objetivamente a potência formadora, inclusive pedagógica, da literatura, o que antes eu só intuía a partir da própria vivência. Hoje defendo – de modo ardoroso, pertinaz e com argumentos evidentes – que o ensino deve ter, no centro vital das atividades escolares, a leitura literária. No entanto, escrever não deve ser moldado para essa finalidade, pois constituir fins, ainda que nobres, desvirtua a literatura ao ponto de a sepultar irremediavelmente. O engajamento da literatura – e de certo modo a literatura é engajamento pleno com a vida, com Eros e com a empatia –, o engajamento da literatura é permanente e inarredável com a plenitude do humano.

Quais são seus projetos literários e de vida para o futuro? 

Escrever, muito e sempre, revisar com afinco tudo o que escrevo, e cotidianamente tentar melhorar o que já escrevi; além disso, dialogar sobre literatura com os mais jovens, quiçá podendo contribuir para que novos talentos se realizem em plenitude; viver apaixonadamente, com minha companheira, e, na medida da realização de cada um, tendo minhas filhas e meus filhos por perto.

Em diálogo com uma peça de divulgação do livro que está no Instagram da Editora, perguntamos: o que é o QOHELET?, o QOHELET mudou sua vida?

Sim, tanto no ato de escrever quanto na releitura de ajustes e correções de agora, o QOHELET mudou a minha vida, mudou a minha compreensão do humano, mudou minha compreensão do próprio fazer literário. A literatura é minha esposa e minha amante, é minha dor e meu prazer, é a razão da vida e a compreensão da morte. É o além do logos, sendo conhecimento, sentimento e plenitude. É o eu, a alteridade e o universal em amálgama. Na escritura do QOHELET me integrei ao humano no mesmo passo em que descobria, do humano, “o semblante horrorizado”, como consta em um dos últimos versos do poema.

Nos revele algo do seu processo criativo para a produção de seus livros.   

Um livro é sempre um projeto particular, cada livro tem seu processo próprio. Cada texto, também, seja narrativa ou poesia, seja soneto ou seja um miniconto ou uma novela. Importa a constância, escrever todos os dias, e importa ainda mais a resiliência, o reescrever cada texto inúmeras vezes, na busca de intangível perfeição microscópica, textual, e macroscópica, dos significados construídos. A diferença entre um texto de baixa densidade, um texto na fímbria do literário, para um texto literário, e portanto um texto de alta densidade, é no mais das vezes uma releitura a mais, um torneio na nuance do dizer, uma escolha lexical apropriada. Escrever é buscar a simplicidade na complexidade, é um artifício, uma artesania, um constructo, é lapidação que realce as nuances do brilho cristalino de cada palavra, que retire escolhos, que deixe o texto falar por si para muito além das contingências do autor. Quando o autor se mete a escrever sem deixar que o poema ou a narrativa falem por si mesmas, o literário se esvanece, a vida se torna ponto de vista e não a dor latejante de humanidade que é o primado da melhor literatura em todos os tempos. É isso que busco – já se alcanço, se realizo, é outro aspecto: mais do que a mim, cabe a cada leitor ter o seu veredito, que é o que importa.

QOHELET

A BUSCA DA SABEDORIA NO AMOR E NA SENSUALIDADE

“[…],

mesmo, blasfêmia, que Deus o acoite,
e ainda todos o sigam em manada,
e em mim sibilem os ações do açoite,

tenho somente a ti em mim encarnada.”
Assim ela disse, e eu já respondi:
“Delícia de esposa, minha amada,

eis que por inteiro me entonteci
com palavras que com lábios de mel
pronuncias, e assim, todo aqui

agora e no sempre, mesmo em fel,
serei seu, somente, sem jaça.”
E eu, Qohelet, canto a lua-de-mel:

“Seu aroma excede, no que me abraça,
[…]”.
(Qohelet, 3ª edição, p. 42-43).


Qohelet narra, ao poeta, sua travessia
na busca do amor e do conhecimento

“O erotismo presente na escrita de Rauer não se resume na exploração de atos sexuais descritos com toda sua verossimilhança ou em uma reprodução, quase ofegante, dos mesmos sentidos atribuídos em tal ato, mas, sim, por um intenso trabalho de escoamento, adestramento e peneiramento das possibilidades oferecidas pela linguagem (e somente por ela sustentada) para traduzir a copulação entre o sagrado e o profano. […] Em QoheletQohelet fez, do corpo, o ofício de escrever, e do escrever, o ofício do corpo.” (Cris Guzzi, Qohelet, 2ª edição, 2019).

Qohelet se refere ao amor tanto em sua qualidade divina, casta, religiosa quanto carnal, secular, herética. Assim como a conjunção do sagrado e profano só é possível a partir do momento em que Qohelet faz da poesia seu evangelho, a poesia só pode existir enquanto esses dois elementos estiverem juntos, unidos pelo amor que faz o poeta transitar entre o sacro e a perplexidade, entre o divino e o mundano. Ao unir esses dois elementos, o fazer poético se torna o único caminho possível para a busca pela sabedoria.” (Pauliane Amaral e Pedro Germano Leal, Qohelet, 3ª edição, 2022).

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Qohelet, de Rauer, com desenhos de Willia Katia Oliveira, AQUI.

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