A ARTE DE ESCREVER 5 – 29 aforismos sobre o microconto

O assim chamado microconto têm-se destacado nos últimos tempos, no Brasil, como subgênero da prosa ficcional com imensa divulgação, centenas de cultores e milhares de publicações nas mídias sociais. Disseminado sob a égide da virtualidade digital, trata-se, no entanto, de modalidade de expressão literária que já era cultivada, em especial entre autores hispano-americanos, desde meados do século XX. A forma expressiva do microconto, cuja síntese termina por coalescer com formas expressivas de outros subgêneros e mesmo com o gênero lírico, faz com que, olhando em revisão crítica para a expressão poética do modernismo, percebamos que muitos poemas do início do novecentos, e mesmo de épocas precedentes, podem ser lidos hoje como microcontos avant la letre. A presença massiva de produções chamadas de microconto em blogs e em outras plataformas e mídias da internet não tem tido correspondente interesse de avaliação teórica na universidade brasileira. Já nos países de língua castelhana das Américas, nomeada quase sempre como microficción, mas também recebendo outras denominações, há uma produção teórica que procura descrever o subgênero, verificando sua configuração e traçando os seus limites. O objetivo deste trabalho é, por meio de 29 aforismos, principiar um levantamento das características do microconto brasileiro, considerando publicações assim nomeadas por autores que já tenham alcançado algum reconhecimento crítico ou editorial por suas realizações literárias.

OS AFORISMOS
1. O microconto é uma casca de ovo, com alguma clara e um pingo de gema que escorreu, boiando na enxurrada escura sob a luz noturna da lua minguante.
2. O microconto já existia em sociedades ágrafas; na sequência, podemos vê-lo em Tales e em Heráclito, assim como em Hesíodo e em Safo.
3. O microconto foi praticado em todos os períodos da humanidade, oculto nas dobras de outros gêneros e formas.
4. O microconto marca a ascensão do mundo digital, eletrônico, computacional, internético, que sepulta — sem ultrapassar — o universo das máquinas mecânicas.
5. O microconto é alexandrino por essência, e se vale da ambiguidade do ocaso que é aurora.
6. É desse microconto, que sepulta o albatroz baudelariano erigindo bytes virtuais, de que falamos.
7. O microconto só se faz — de modo intenso e completo — com o espírito da virtualidade, mas se presentifica independente do suporte e do media.
8. O microconto é a fronteira da expressão literária, no limes entre poesia e prosa, entre épica e elipse, entre a rigidez do amor e a sinfonia atonal.
9. O microconto, mesmo aquele que se aproxima do humor mais escrachado, tem algo de soturno.
10. O microconto absorve todas as formas, fôrmas, gêneros e modos de expressão de todas as artes: é antropofágico e onívoro.
11. O efeito único do microconto é como um raio de sol que se refrata em todas as cores do arco-íris.
12. O microconto apresenta tantas menções intertextuais quantas são as palavras que o compõe. Onde se lê intertexto, leia-se hipertexto.
13. O microconto é o nó da rede: cada nó nunca é mais que a fração mínima de um possível narrativo: o microconto é um fóton que contém o universo.
14. No microconto, os hipertextos intertextuais que suplementam em acréscimo, debate ou derrogação presentificam-se como a sombra de um eclipse.
15. O microconto é silêncio, alma, morte e ressurreição.
16. O microconto transpõe barreiras, sendo o próprio limes.
17. A história submersa do microconto é um mergulho em desvãos pressentidos, porém insondáveis.
18. O microconto realiza todos os gêneros literários, todas as formas poéticas, todas as estratégias narrativas; o microconto é um fractal que convida o leitor para a contradança.
19. Não existe microconto de atmosfera ou de enredo: todo microconto persegue um enredo forjando uma atmosfera.
20. O microconto é o encontro da poesia com a prosa no balbucio do recém-nascido.
21. No microconto não há uma história evidente e uma segunda história, secreta — jamais fragmento, há no microconto o encontro de diversas histórias, ou microconto não há.
22. Se a narrativa tem mais que a epifania após o clímax, não é um microconto.
23. Se a epifania do microconto fulge, o microconto vira um falso fogo-de-artifício.
24. O microconto pode ser um haiku, mas ao contrário do haiku, que morre se recebe um título, o microconto sem título fica manco das duas pernas.
25. O microconto pode ser lido em uma única risada.
26. O microconto, ainda que encene um dia radioso, de sol escaldante, no meio da tarde, é um gênero noturno.
27. O microconto é inapreensível. Toda arte é. A arte, em seu recorte, representa uma totalidade fechada, autônoma — e oxímora, referencial. O microconto também é totalidade.
28. O microconto coalesce nos limites da poesia e da narrativa, incorporando e transformando formas simples e sub-gêneros literários, formatando-se como um novo gênero.
29. O microconto é a poalha em réstia de luz nos escombros de uma casa em ruínas.

Resumo do texto: Reflexões sobre o microconto brasileiro contemporâneo, em forma de 29 aforismos. De maneira oblíqua, retoma a trajetória do conto moderno, iniciada com Edgar Allan Poe e marcada, em especial, pelas contribuições de Machado de Assis, Tchekhov, Joyce, Kafka, Virgina Woolf, Mansfield, Borges, Hemingway, Cortazar, Piglia e Luiz Vilela. Vê em passado mítico e nas histórias orais do período ágrafo rastros do que é o microconto dos nossos dias. Deduz ligações entre a virtualidade dos bytes contemporâneos e o novo modo de construir as micronarrativas. Insiste na intangibilidade do literário.
Palavras-Chave: Conto; Hemingway; Literatura Brasileira Contemporânea; Luiz Vilela; Poe; Tchekhov

ALGUNS MICROCONTOS

Tempo. Inesperadamente, inventei uma máquina do
Alan Moore

Olha, Pai, eu tentei, mas acho que não deu muito certo não…
Antônio Prata

Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida.
Anton Tchekhov

O DINOSSAURO
Quando acordou o dinossauro ainda estava lá.
Augusto Monterroso

 70 anos, algumas lágrimas, orelhas peludas.
Bill Querengesser

COTA ZERO
Stop
a vida parou
ou foi o automóvel?
Carlos Drummond de Andrade 

O suicida era tão meticuloso que teve que refazer diversas vezes o nó da corda para se enforcar.
Carlos Seabra 

Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.
Cíntia Moscovich 

Quase uma vítima da minha família.
Chuck Sangster

A velha insônia tossiu três da manhã.
Dalton Trevisan

Conheceu a esposa em sua festa de despedida.
Eddie Matz 

Vestiu os artefatos, beijou o filho com ternura e saiu pro último trabalho sobre a Terra.
Edival Lourenço 

Vende-se: sapatinhos de bebê, nunca usados.
Ernest Hemingway

Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.
Franz Kafka

2 de agosto: a Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde.
Franz Kafka

Nascido no deserto, ainda com sede.
Georgene Nunn

Então você acredita em mim de qualquer maneira?
James Frey

O homem estava invisível, mas ninguém percebeu.
José María Merino

A mulher que amei se transformou em fantasma. Eu sou o lugar das aparições.
Juan José Arreola

Eu escolhi paixão. Agora sou pobre.
Kathleen E. Whitlock

CONFISSÃO
─ Fui me confessar ao mar.
─ O que ele disse?
─ Nada.
Lygia Fagundes Telles

AMOR
Maria, quero caber todo em você.
Manoel de Barros

Se Eu não acreditar em Mim, quem vai acreditar?
Marcelino Freire

Morreu
Marcelo Rota

Escrever sobre sexo, aprender sobre o amor.
Martha Garvey

Sem futuro, sem passado. Nada perdeu.
Matt Brensilver

Pegou o chapéu, embrulhou o sol, então nunca mais amanheceu.
Menalton Braff

Ouvi um barulho no portão, fui ver era a Lua nova.
Nei Duclós

Assistindo calmamente de cada moldura da porta.
Nicole Resseguie

amor
humor
Oswald de Andrade

Alzheimer: conhecer novas pessoas todos os dias.
Phil Skversky

amor
dor
Rauer

EPITÁFIO
Sultão, gozei festas, carrões, consumo, mulheres mil.
Deixo filhos às dezenas, para que acabem logo com o planeta.
Rauer 

Eu perguntei. Eles responderam. Eu escrevi.
Sebastian Junger

Eu ainda faço café para dois.
Zak Nelson
 

Para mais informações sobre o microconto:
CAMPOS, Luciene Lemos de (Org.). DOSSIÊ: O MICROCONTO. Carandá – Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 242-327. Disponível em: < http://gpluizvilela.blogspot.com/2012/02/caranda-4.html >, acesso em 05.08.2019. [No Dossiê, a relação de referências teóricas sobre o microconto, presentes a cada artigo, permanece válida].

Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia

Informação importante: O Prof. Rauer ministrou, há alguns anos, na pós-graduação de Letras / Estudos Literários do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, um Curso de Escrita Criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados pelo professor, serão replicados no Blog da Editora Pangeia ao longo das próximas semanas e meses. Além dos textos que então utilizou no curso, o professor incluirá outros, ampliando o escopo do curso para um público além dos estudantes universitários. Não perca! Vale a pena acompanhar. (Rízio Macedo Rodrigues, Editor, Editora Pangeia).

TEXTOS ANTERIORES DESTA SÉRIE
Como publicar seu livro:
https://editorapangeia.com.br/como-publicar-seu-livro/ >.
Aula 1: “A arte de escrever 1 – As oito lições de Isaac Babel”:
https://editorapangeia.com.br/a-arte-de-escrever-1-as-oito-licoes-de-isaac-babel/ >.
Aula 2: “A arte de escrever 2 – Os segredos da ficção, segundo Raimundo Carrero”:
https://editorapangeia.com.br/a-arte-de-escrever-2-os-segredos-da-ficcao-segundo-raimundo-carrero/ >.
Aula 3: “A arte de escrever 3 – Evite verbos de pensamento”:
https://editorapangeia.com.br/a-arte-de-escrever-3-evite-verbos-de-pensamento-essa-e-a-dica-de-palahniuk/ >.
Aula 4: “A arte de escrever 4 – Dicas de 15 escritoras”:
https://editorapangeia.com.br/a-arte-de-escrever-4-dicas-de-15-escritoras/>.

 

A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.

https://editorapangeia.com.br/blog/

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Comentários Recentes

  • Rauer Rodrigues
    agosto 31, 2019 - 11:54 am · Responder

    Professora Maria Zilda, muito obrigado pelo comentário!
    Divertido e denso, não necessariamente nessa ordem, é uma boa síntese do que se espera de um bom microconto, embora ele sempre tenha muito mais que isso. O comentarista quiça se embebeu do objeto que comenta.
    Obrigado!
    Grande abraço.

  • Rauer Rodrigues
    setembro 22, 2019 - 12:56 pm · Responder

    Olá, bom dia!
    A Série A ARTE DE ESCREVER vem se apresentando com publicações semanais no blog da Editora Pangeia.
    Para estabelecer diálogo sobre os textos, fique à vontade para nos contatar pelas redes sociais ou – preferencialmente – nos comentários deste blog.
    Abraço grande aos nossos leitores, com um muito obrigado pela receptividade de todos.
    Rauer.

  • F. C. Souza
    julho 22, 2021 - 10:12 pm · Responder

    Excelente. Esse texto me ajudou de verdade.
    Só uma dica: é importante colocar os títulos dos microcontos.
    Porque o título faz parte do conjunto da obra.
    Por exemplo, leia o segundo microconto dessa lista, o de Antonio Prata.
    Leu? Agora releia abaixo com o título:

    A Bíblia (special features)
    Olha, Pai, eu tentei, mas acho que não deu muito certo não.

    “Special features” é um bônus, como aqueles extras que a gente vê em DVDs, entende?
    Nesse caso um bônus bíblico, uma história à parte. Percebe a ironia?

    Um abraço.

    • Pangeia
      julho 23, 2021 - 1:43 pm · Responder

      Boa observação Filipe, porém ter o título ou não faz parte da arte do microconto.
      O editor da Pangeia gosta, assim como você, de colocar título para compor o todo do microconto, porém em certas ocasiões a não inclusão do título trás um mistério ou deixa algo subentendido no ar, algo o qual o autor não quer que seja revelado propositadamente. Por exemplo, na famosa música de Tom Jobim, até hoje não sabemos quem é a garota de Ipanema ou até mesmo se ela se trata de uma pessoa ou de um aforismo.
      Bem vindo à família Pangeia! =)

    • Pangeia
      julho 23, 2021 - 1:48 pm · Responder

      Sobre o special features que você incluiu no microconto de Antônio Prata, é quase um estupro ao texto, uma vez que não se pode definir que ele estava falando de um pai celestial, talvez ele tivesse problemas com o pai dele e estava desabafando, talvez realmente estava falando do pai bíblico, talvez ele seja ateu e se incomodaria muito com a colocação… não saberemos…
      Como dito no comentário anterior, ele quis que ficasse subentendido, e essa é a beleza de sua arte…
      =)

  • F. C. Souza
    julho 26, 2021 - 1:12 am · Responder

    Eu entendo o que quer dizer.
    Sobre o “special features”, é apenas uma interpretação.
    Mas faz parte do título e está no livro “Os cem menores contos brasileiros do século”.

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