“Flávia de Queiroz Lima nos encanta e nos instiga”

Vivências e experiências: matéria de poesia
Maria Nazareth Soares Fonseca *

Tomei contato com a poesia de Flávia de Queiroz Lima quando passei a participar dos saraus organizados por uma amiga querida que vive atualmente na África do Sul. Os saraus instigavam discussões, reflexões e explodiam em expressões de criatividade a partir dos temas escolhidos pelo grupo de mulheres, as sarauzeiras. Nessa fase, conheci poemas que a Flávia apresentou ao grupo.

Os encontros ganharam novo formato quando a amiga querida decidiu retornar à África, deixando plantadas entre suas companheiras as sementes desses momentos magníficos. Algumas poucas sarauzeiras decidiram dar continuidade aos encontros mensais, passando a realizá-los com horário ajustado ao fuso horário que separa Belo Horizonte de Cap Town para permitir que a criadora dos saraus continuasse a participar dos saraus, de forma on-line.

Nessa nova fase, tínhamos contatos mensais com os poemas da Flávia, criados a partir dos temas sugeridos para discussão.

Infelizmente, a chegada da pandemia do Coronavírus motivou a interrupção dos saraus mesmo quando realizados on-line, porque um misto de desesperança e tristeza ficou como tema único das discussões.

O contato com a criatividade explícita que reinava nesses encontros, sempre enriquecida com os poemas da Flávia, ficou interrompido, mas, vez por outra, éramos contempladas com belos poemas que a Flávia continuou escrevendo, sem temer a sisudez da pandemia, aguçando discussões sobre os belos arranjos criados por ela, como motivação para fortalecer laços, afetos e compartilhamentos.

A Flávia já despontara no cenário da poesia com o livro Círculo de giz, publicado em 1983. Com a publicação do belo Arrumar as gavetas, lançado em 2012, inaugurou um formato que iria se repetir nos livros seguintes, o de agrupar em partes-gavetas-momentos os seus poemas, criando diálogos com outras artes – pinturas, fotos, desenhos – para ampliar os sentidos dos poemas.

No livro Arrumar as gavetas (2012), os diálogos são feitos com vários artistas que deixam a sua arte impressa em traços, fotos e vozes que emanam do CD acoplado ao livro, permitindo que os poemas possam ser apreendidos não somente pelos olhos dos(as) leitores(as). As vozes que dizem os poemas permitem outra forma de recepção, outro modo de aguçar a nossa sensibilidade.

O livro Sobre Viver, de 2019, além de poemas traz belas fotos que “conversam” com a proposta de cada parte do livro, constituído todo ele de poemas que a Flávia criou para serem apresentados nos saraus.

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O agradecimento explícito às amigas sarauzeiras relembra os momentos de compartilhamento muito próprios dos saraus, a discussão de temas dolorosos que foram poeticamente apresentados por Flávia, transfigurados por sua capacidade esplêndida de transformar em arte as durezas da vida, as lembranças de tempos passados e as gentilezas que brotam do cotidiano.

O livro Laços e Avessos expressa o modo com que a Flávia foi transformando o desencanto emergido da pandemia, aguçado por sua longa permanência entre nós em força criadora. A arte poética de Flávia de Queiroz Lima renasce do vigor com que é enfrentada a luta com as palavras.

O novo livro chega, por isso, vigoroso e belo não somente pela sensibilidade da autora de vasculhar a memória e auscultar os muitos motivos decodificados pela escrita, mas também pelos vários diálogos estabelecidos em sua composição.

Nas conversas com as poetisas e poeta conclamados pelas epígrafes na abertura de cada uma das partes do livro; com as imagens criadas pela artista Leonora Weissmann em magníficos traços coloridos de azul; nas relações que os poemas estabelecem com fatos marcantes da realidade concreta do país, movimento também provocado pela predileção por vasculhar materiais guardados na memória, em arquivos, em gavetas imaginárias. Amarramentos, rupturas, cortes e recortes são elementos de uma poesia que passa por vários temas, por vezes, sem respeitar inteiramente os limites postos pelas delimitações de cada parte.

O título dado ao novo livro é composto por palavras que instigam pensar em direções inusitadas inferidas dos significados que a palavra “avessos” permite construir, sobretudo quando é posta em relação com “laços”, também presente no título.

Laços remete a amarramentos concretos e metafóricos que reiteram a ação de amarrar, unir, criar raízes, vínculos de amizade e de amor profundo. É possível dizer que a palavra “laços” também induz a significados que caminham em direção contrária, pois está contida em “desenlaces” que indica o avesso do que se quer unir, amarrar.

O título instiga a que se espreitem os amarramentos e desenlaces que os poemas do livro sedutoramente nos oferecem nos “além do canto, da fala e do sussurro”, anunciados em versos de poema da escritora Maria José de Queiroz, retomados na epígrafe que abre a primeira parte do livro: “Enigmas e Horizontes”.

A parte “Enigmas e horizontes se inicia com o poema “Começar de novo”, escrito em janeiro de 2021, fase crítica da pandemia do Coronavírus, referida, por vezes, de forma metafórica, em vários versos. O poema, ao mesmo tempo que se refere a marcas de um “tempo perdido”, “dúvidas” e “ressalvas”, evoca um “recomeço” duramente traçado “no espanto, no estranhamento”. As palavras “desalinho” e “descompasso” revisitam os sentidos de “avesso”, acolhido pelo título do livro, ao mesmo tempo que se projetam laços com o futuro, poeticamente anunciado por palavras e expressões como “horizonte”, “novos gestos” e por formas verbais cujos sentidos anunciam a renovação: “prossegue”, “regenera”, “desentranha”.

A mesma estratégia de construção poética que explora arranjos de palavras postas em tensão figura no título da segunda parte do livro, “Assombros e labirintos”.

Essa parte acolhe um conjunto de poemas que exploram um campo semântico em que se abrigam palavras que, no poema “Desenredo”, permite aproximações entre a cena manifesta, aludida pelas palavras “cena”, “trama”, “cenário”, “camarins”, “aplauso”, “vaia”, do campo semântico do teatro, e outras que indiciam reveses: “trapaça”, “cilada”, emboscada”, permitindo que os sentidos da palavra escolhida como título se espraie pelos intricados labirintos da vida.

Outros poemas dessa mesma parte insistem em demarcar espaços por onde o medo se alastra, como se mostra no poema “Chão perdido”, ou em que imperam a discórdia e a violência, perceptíveis em “Fronteira invisível” e em “Rapina”, que alude a fatos tão presentes nas páginas da imprensa nos dias atuais: o garimpo clandestino em terras indígenas e o extermínio da dignidade da terra, obrigada a seguir, com passos dolorosos, o seu “próprio desatino”.

 A intenção de nomear as partes do livro por palavras que indicam a tensão descrita pelos poemas suspende-se no título dado à terceira parte, “Cortinas abertas” – que explora motivações do teatro, expressas nos termos “cena”, “ribalta”, “figurino”, “máscara”, presentes no poema “Em cena”, magistralmente postado na abertura dessa terceira parte, indicando a intenção de abrir cenários e enredos e exibir a “mágica mímica” (título dado a um outro poema dessa parte) para pontuar indagações postas, em poemas do livro, sobre as relações entre a vida e a poesia.

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Não por acaso, um dos poemas dessa terceira parte é dedicado à poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, conhecida não apenas pela alta qualidade de sua produção poética, mas, também por lutar contra o fascismo, em Portugal. O poema “Ouvir Sophia” expressa as duas feições da poesia de Sophia Breyner, descritas, com sensibilidade, em estrofe que alude a “facas, dardos, lâminas”, mas também ressalta as “cores e linhas” com que é tecida a obra poética da grande poetisa portuguesa.

Também nessa parte figura o poema “Transfiguração pelo afeto”, que homenageia o trabalho da Dra. Nise da Silveira, conhecida no Brasil e no exterior pelo trabalho que realizou, sobretudo no Museu do Inconsciente, no Rio de Janeiro, empregando a arte como terapia curativa.

O livro se fecha com a quarta e última parte, “Afetos e afagos”, cujo título se afasta da intenção tensional inscrita no título e na nomeação da primeira e segunda partes do livro.

Na quarta parte, os gestos de ternura são a mola que impulsiona o convívio com as lembranças afetivas evocadas pela poetisa. Essas lembranças se fazem presentes em vários poemas, por exemplo, na terna evocação que transparece no poema “Alcista”, dedicado à avó da autora, à mãe, que “fazia vestidos iguais para a filha e para a sua boneca”, chamada Alcista como a avó.

Expressões de ternura são também os versos que resgatam a boneca de “corpo de pano e paina” e a “menina aflita / que o abraço da boneca consolava / socorria”.

No poema “Colheita”, afetos se disseminam nos gestos que espreitam a alquimia verbal que transforma assombros e cicatrizes em flores e cores, referindo-se a colheitas e braçadas de afetos e enredos.

E quem é capaz de apreender a força do cotidiano transmudado em matéria de poesia, lerá com encantamento os versos do poema “Receita caseira”, magnífico no modo com o qual transforma receitas em “arte que põe sabores nas palavras”:

Minha receita põe sabores nas palavras
– ferve emoções, atiça intentos, condimenta,
acende cheiros, recendendo nos poemas,
fartando aos poucos essa fome que sustenta.

O livro Laços e Avessos exibe a arte que a Flávia de Queiroz Lima pratica, com sabedoria e sensatez, ao transformar em poesia motivos tirados do cotidiano e do modo muito perspicaz com que observa o mundo. O livro oferece aos(às) leitores(as) uma poesia cultivada na arte de lidar com as palavras como ofício de “deixar pegadas no espanto”, como anunciam versos do poema “Laços”, na parte final do livro.

Laços e Avessos, de Flávia de Queiroz Lima, é livro que nos encanta e, ao mesmo tempo, nos instiga a refletir sobre o mundo em que vivemos.

* Maria Nazareth Soares Fonseca, doutora em Literatura Comparada.
Professora aposentada da UFMG. Professora de Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC
Minas (1995-2018). Coordenadora do site literÁfrica / UFMG.

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