O subtítulo do livro de Raimundo Carrero sobre Os segredos da ficção não deixa dúvidas: Um guia da arte de escrever narrativas. Reproduzimos aqui a sequência de evocações que Carrero faz na Introdução da obra, mencionando alguns escritores e teóricos paradigmáticos no domínio da linguagem.
Vamos ao fragmento do texto de Carrero.
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CARRERO, Raimundo. Os segredos da ficção: um guia na arte de escrever narrativas. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 18-19. [Excerto da Introdução].
Os segredos da ficção ─ Um guia da arte de escrever narrativas pretende colocar o autor iniciante diante do seu próprio desafio. Nas oficinas, nos reunimos em salas de aula, e então começa a batalha. Durante meses discutimos autores, vemos filmes, refletimos. Os filmes são ótimos para estudar o desenvolvimento (enredo), caracterização de personagens, diálogos. O que se quer ali é fazer com que o novo autor encontre a sua identidade.
Num rápido exemplo, lembro ainda Hemingway, que, falando a respeito do seu processo criativo, alertava que jamais esqueceu a ocasião em que se instalou numa cabana, junto à linha da chegada de uma corrida de bicicleta, a fim de corrigir as provas tipográficas de Adeus às armas. Precisou reescrever o final trinta e nove vezes, no manuscrito; modificou-o trinta vezes nas provas tipográficas, procurando fazer com que ficasse como queria. Consegui-o, finalmente. Ocorre que os novos autores só conseguem ver o que está publicado. Não sabem o esforço que custou, as noites insones, os dias sacrificados.
O argentino Jorge Luis Borges confessa também que Carlos Frias sugeriu-lhe que aproveitasse o prólogo de um dos seus livros para uma declaração a respeito de sua estética. Escrupuloso, respondeu logo que não era possuidor de uma estética. Mesmo assim, parece que o tempo ensinou-lhe algumas astúcias: evitar os sinônimos que, segundo ele, têm a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias; evitar hispanismos, argentinismos, arcaísmo e neologismos; preferir as palavras habituais às palavras assombrosas; intercalar em um relato traços circunstanciais, exigidos agora pelo leitor; simular pequenas incertezas, já que, segundo diz, se a realidade é precisa, a memória não o é; narrar os fatos como se não os entendesse totalmente (isso ele aprendeu, diz, em Kipling, e nas sagas da Islândia); lembrar que as normas anteriores não são obrigações e que o tempo se encarregará de aboli-las. Claro, Borges tem razão: não existe verdade absoluta no campo da criação. As técnicas se inventam e se reinventam. Mudam sempre. Iluminam-se e deslocam-se.
É preciso dizer isso com toda a convicção ─ cada narrativa e cada frase, não raro cada palavra, exige uma técnica diferente. Particular. Não há salvação. Mesmo Hemingway sabia que a pulsação narrativa pede palavras, frases e pontuação diferentes ─ ou até antagônicas ─ a cada movimento. Afinal, estamos falando do espírito humano. E nada é mais terrível do que o espírito humano com astúcias e armadilhas, abismos e sombras, clareiras e tempestades. Um autor é o personagem e é o autor, portanto deve estar sempre em equilíbrio entre os dois e entre os outros personagens que vão fazendo novas exigências. E outras palavras. E outras frases. E outras circunstâncias.
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Raimundo Carrero nasceu em Pernambuco em 1947, formou-se escritor tendo Ariano Suassuna por referência e ganhou diversos prêmios importantes (Jabuti, APCA, Machado de Assis). Com cerca de duas dezenas de livros publicados, principalmente romances e contos, tem algumas de suas obras traduzidas no exterior. Dedicou-se durante muitos anos a uma oficina de criação literária, e foi a partir das aulas e da interação com escritores iniciantes que escreveu Os segredos da ficção. Trata-se de iniciativa, a reflexão teórica e pragmática sobre a arte de escrever, a que os escritores brasileiros não são muito afeitos, ainda que quase todos produzam poemas ou narrativas metaliterárias.
Além da Introdução, da qual retiramos o excerto, o livro contém três partes: A voz narrativa; O processo criativo; A construção do personagem. Traz ainda uma bibliografia comentada e índice. As duas últimas partes são subdivididas em capítulos, e cada capítulo em tópicos. Esses tópicos são didáticos e objetivos, com exemplos práticos da questão técnica da arte de escrever que é abordada.
Dirigido a autor novo, iniciante, o livro, no entanto, tem seu interesse para autores veteranos e para estudiosos da literatura, por expor de modo claro ─ na concepção de Raimundo Carrero ─ a carpintaria da arte da construção de narrativas ficcionais.
Já no excerto que apresentamos, vemos o cuidado de Carrero ao buscar, em vozes com a autoridade do reconhecimento público da maestria como escritores, a validação dos pontos de vista que defende.
Assim, ali, cita Hemingway, Borges e Kipling. Na Introdução, traz ainda, entre outros, Ariano, Autran Dourado, Bakhtin, Barthes, Flaubert, Forster, Joyce, Lhosa, Lubbock, Osman Lins e Truman Capote. Menciona as indicações que recebeu quando jovem de Hermilo Borba Filho e Gilberto Freyre: Dostoiévski, Tolstoi, Kazantzákis, José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade. Após recordar o aprendizado ao escrever os próprios livros, Carrero informa que seus autores prediletos para as oficinas de criação literária são Machado de Assis, Graciliano Ramos, Ismail Kadaré, Austin Gómez Arcos e Juan Rulfo. Cita ainda outros livros, outros escritores e outros pensadores, mas na listagem acima temos já indiciada um Paideuma, ou seja, o seu cânone particular, as referências de sua formação como escritor.
Das lições de Carrero sobressaem algumas dicas ─ e listamos algumas abaixo, sem hierarquia, optando por registrar aquelas mais gerais:
- “Não existe verdade absoluta no campo da criação”;
- Reescreva até que o texto fique exatamente como quer que fique;
- Evitar confusões terminológicas ao multiplicar sinônimos;
- Utilize palavras habituais, conhecidas;
- Não seja preciso, pois a realidade é imprecisa;
- Utilize a técnica adequada para cada momento textual, sem se prender a qualquer apriorismo;
- Tenha disciplina, método e rigor;
- Trabalhe os símbolos que a narrativa contém;
- Corra riscos ao escrever, ou você não é um escritor;
- Regras, normas ou determinações são sugestões de trabalho e não imposição à veia inventiva;
- O compromisso da literatura é com a criação;
- Assistir filmes propicia aprendizados interessantes para o escritor;
- “A verdadeira arte é sutil.”
Grande Carrero!
Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia
Informação importante: O Prof. Rauer ministrou na pós-graduação de Letras / Estudos Literários, do Câmpus de Três Lagoas da UFMS, um Curso de Escrita Criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, aqui comentados pelo professor, serão replicados no Blog da Editora Pangeia ao longo das próximas semanas e meses. Não perca! Vale a pena acompanhar. (Rízio Macedo Rodrigues, Editor, Editora Pangeia).
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A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.
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Rauer Rodrigues
setembro 22, 2019 - 12:53 pm ·A Série A ARTE DE ESCREVER vem se apresentando com publicações semanais aqui no blog da Editora Pangeia.
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