As “grades invisíveis” da poesia de Flávia de Queiroz Lima em poema inédito

A professora Maria Nazareth Soares Fonseca, no artigo “Vivências e experiências: matéria de poesia”, afirma, a determinada altura:

O livro Laços e Avessos exibe a arte que a Flávia de Queiroz Lima pratica, com sabedoria e sensatez, ao transformar em poesia motivos tirados do cotidiano e do modo muito perspicaz com que observa o mundo. O livro oferece aos(às) leitores(as) uma poesia cultivada na arte de lidar com as palavras como ofício de “deixar pegadas no espanto”, como anunciam versos do poema “Laços”, na parte final do livro.

O espanto da poeta com os motivos retirados do cotidiano, nas expressões grifadas, está presente desde sempre na poesia de Flávia de Queiroz Lima. Está, por exemplo, no poema que dá título ao livro Círculo de Giz, conforme se pode constatar AQUI no Blog da Pangeia.

O poema em si, e a ilustração de Ferruccio (é dele o recorte da imagem que está no cabeçalho deste texto), evidenciam as “grades invisíveis” que acorrentam, que isolam, que constrangem o eu-lírico feminino e o sujeito poético mulher. Trata-se, provavelmente, de uma manifestação introjetada de um (ou do) “poder simbólico”, nos termos em que a expressão foi definida por Pierre Bourdieu.

Diversos poemas nos quatro livros de Flávia de Queiroz Lima contém, subliminarmente, esses grilhões, evidenciando o ser-estar do feminino no cotidiano das mulheres do final do século XX e neste primeiro quarto do século XXI.

“Moldura acesa”, poema inédito de Flávia, a Flavíssima (ver AQUI), tem essa situação nas linhas e nas entrelinhas. Confira:

MOLDURA ACESA

Cada cenário emergindo em meus sonhos
move um novelo de enredos submersos,
põe na moldura memórias fortuitas,
rompe silêncios, dá voz ao reverso.

Casas sempre me visitam
– familiares, estranhas,
seus espaços revolvidos
em repentinas mudanças.
Nas entranhas vãos secretos
brotam senhas, me adivinham,
vagas cenas se avizinham
mas se esgarçam nas lembranças…

Ressurge a grade invisível
cerceando o olhar aceso.
Rondam algemas, mordaças,
tentando atiçar os medos…
Terços de rezas infindas,
ladainhas de conselhos,
armaduras e armadilhas
quase nada me prenderam.

Trajetos revisitados
retornando desafios,
tropeços desconcertantes
enredando como um fio
os sentimentos ousados,
as certezas provisórias,
refinando a sutileza
entre o delírio e a história.

Cada pessoa povoando meus sonhos
deixa entrever um desejo, um recado
como se a incerta visita do onírico
fosse, no fundo, um encontro marcado.

18.08.2024

Flávia de Queiroz Lima
Escritora, poeta, letrista, compositora, resenhista, cronista, sarauzeira, mãe, mulher, trabalhadora e sensível leitora de ficção e de poesia, escrevendo pequenas e densas resenhas de suas leituras.

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