Esta série sobre escrita criativa, voltado em especial para a arte de ficção, mas de bom proveito para escritores de outras áreas (poetas, ensaistas, acadêmicos, estudantes, etc.), tem início hoje com a leitura de um conto de Isaac Babel.
Isaac Babel (1894) é um dos maiores nomes da literatura russa do século XX, e sua escrita precisa e compassiva tem sido, desde que surgiu, um paradigma para todos os grandes escritores das literaturas ocidentais. Preso pelo regime stalinista em 1939, foi executado em 1940.
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BABEL, Isaac. Guy de Maupassant. ______. A cavalaria vermelha. Trad. Berenice Xavier; introd. Lionel Trilling. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. p. 270-278. Conto.
Uma ocorrência terminante, uma martelada que, por inesperada, impacta o leitor: o ponto final deve descer como uma punhalada sobre o coração do leitor. Eis uma paráfrase de Isaac Babel no conto “Guy de Maupassant”, em lição que parece seguir as pegadas das propostas para textos breves definidas por Edgar Allan Poe no seminal ensaio “A filosofia da composição”. Mas vai além, como veremos abaixo.
Leio o conto de Isaac Babel na tradução de Berenice Xavier, na edição de 1969, da Editora Civilização Brasileira, na p. 273 (há ao menos mais outra edição desta tradução, pela Ediouro, publicada provavelmente de 1985 ─ sim, informações incompletas de edição não são novidade).
“Guy de Maupassant” é narrado em primeira pessoa por um jovem de vinte anos que chega no inverno de 1916 a São Petersburgo “com um passaporte forjado e sem um níquel”. Ainda assim, recusa emprego em uma fábrica, pois “é preferível passar fome, ir para a prisão ou ser um vagabundo, a permanecer dez horas do dia a uma mesa de escritório”.
Evocando certa “sabedoria de meus antepassados”, ainda que reconheça que “[n]ão havia nada de louvável nessa minha decisão”, o protagonista argumenta: “nascêramos para gostar de nosso trabalho, de nossas lutas e de nossos amores, nascêramos para isso, e nada mais.”
O conto tem caráter metapoético, e a passagem, cuja recusa ao emprego caracteriza uma diretriz artística do escritor, causa horror e admiração ao professor amigo que o acolhera.
O professor indica o jovem para auxiliar a mulher de um editor que tentava sem sucesso traduzir Maupassant: “é a única paixão da minha vida”, ela diz ao rapaz diante dos vinte e nove volumes do escritor.
No entanto, diz o narrador, “[e]m sua tradução não restava sequer um traço das frases fluentes de Maupassant, com a sua fragrância de paixão”. A tradutora “esforçava-se por escrever de maneira correta, mas o que resultava era algo frouxo e sem vida”. Por isso, com o manuscrito em mãos, “[passa] a noite tentando abrir caminho na intrincada selva da prosa de Raïsa”:
“O trabalho não era tão monótono como poderia parecer. Uma frase nasce no mundo, boa e má, ao mesmo tempo. O segredo está numa leve e quase invisível flexão. O instrumento deve ficar em nossas mãos, e só podemos voltá-lo uma vez, nunca duas vezes.”
Raïsa se impressiona. Pergunta-lhe como conseguiu aquele resultado. “Falei-lhe então de estilo, do exército de palavras, exército no qual toda espécie de arma pode ter atividade. Nenhum aço pode penetrar no coração e apunhalá-lo com tanta força como um ponto final no lugar justo.”
Os dois têm à vista a prateleira com os volumes de Maupassant: “Com seus dedos de líquida dissolução, o sol tocava os dorsos de marroquim dos livros ─ túmulo magnífico de um coração humano.”
Seguem a tarefa tradutória: “Miss Harriet”, “Idílio”, “A confissão”… conto a partir do qual, emulando as personagens de Maupassant, os dois se entregam à lascívia sexual, porque, como está no enredo de Maupassant, para se divertirem, um rapaz e uma moça não precisam de música.
Ao chegar em casa, após esse momento, o protagonista se dedica à leitura de uma biografia de Maupassant. Vítima de sífilis hereditária, o escritor viveu entre dores de cabeça, hipocondria e o avanço da cegueira. Era briguento e tentou o suicídio. Morreu no hospício, animalizado, andando de quatro e comendo os próprios excrementos.
Eis o parágrafo final do conto:
“Li o livro até o fim e levantei-me. O nevoeiro aproximava-se da janela: o mundo ocultou-se aos meus olhos. Meu coração contraiu-se, pois o presságio de alguma verdade essencial tocara-me de leve com os dedos.”
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Primeira lição de Babel. Viva o seu sonho e não troque a arte de escrever por nenhuma outra função, trabalho ou amor.
Segunda lição. A paixão pela literatura não basta, é preciso dominar os meios, os instrumentos, as frases, é preciso trazer para a linguagem a fragância da paixão. Ou, conforme a tradução de Cecília Prada para o mesmo conto, o “poderoso hálito da paixão”, pois o segredo de uma frase “está em um ponto crucial que mal se pode discernir.”
Terceira lição. Eis como está a sequência dessa passagem na tradução de Cecília Prada (Editora A Girafa, 2008, p. 526): “Devemos pegar a chave desse enigma gentilmente com os dedos, esquentando-a. E depois a chave deve dar uma volta, e não duas.” Ou seja, devemos ir direto ao ponto, chegar ao cerne do que se pretende dizer e escrever com arte, mas sem rebuscamentos, sem forçar a mão, sem querer que o texto chame mais a atenção do que o narrado.
Quarta lição. As frases devem ter o tamanho justo e necessário. Assim, seu ponto final fica mais forte que o aço e penetra com força o coração. O efeito é de cada frase, não é só do ponto que encerra o conto, cujo efeito terminativo acumula o efeito dos pontos finais precedentes da narrativa.
Quinta lição. Cada livro, mas ainda mais, cada conto, cada poema, cada narrativa, cada texto, contém em si a “cripta do coração humano”, como prefere a tradução de Cecília Prada. Cada unidade textual ─ caso realizada no domínio pleno dos instrumentos linguísticos, poéticos e narrativos ─ contém em si, pois, a integralidade da existência humana.
Sexta lição. Literatura e vida, e a vida e a literatura, se tocam em fluxo constante, ininterrupto.
Sétima lição. Há uma verdade essencial por trás da neblina do universo que podemos pressentir e incorporar a nós pela leitura literária.
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Oitava e última lição de Babel.
Um momento de diálogo entre o protagonista e o professor é destacado no conto. O narrador relata que começou a atacar Tolstoy. Eis o que ele diz, na tradução de Cecília Prada: “Ele ficou com medo, o nosso conde! Faltou-lhe coragem! Foi o medo que o fez voltar-se para a religião! Aterrorizado com o frio, a velhice, o conde tricotou para si um suéter feito de fé!”
Dormem em seguida, bêbados pelo festim realizado com o adiantamento pelos serviços de auxiliar Raïsa a traduzir Maupassant.
Uma última lição de Babel ressalta dessa passagem ─ haja o que houver, um escritor não deve ter medo, não deve vestir nada que não seja a fé na sua escrita, que não deve estar sujeita a nada, a nenhuma pré-condição que lhe seja exterior, a nenhuma condicionante que não seja a coragem de investigar o humano na profundidade, no horror, na humana variabilidade que há em cada um de nós.
Rauer Ribeiro Rodrigues
Professor; escritor; em travessia
Informação importante: O Prof. Rauer ministrou na pós-graduação de literatura da UFMS um Curso de Escrita Criativa; a nosso pedido, alguns dos textos que serviram de diretriz para as aulas, comentados pelo professor, serão replicados no Blog da Editora Pangeia ao longo das próximas semanas e meses. Não perca! Vale a pena acompanhar.
(Rízio Macedo Rodrigues, Editor, Editora Pangeia).
A ARTE DE ESCREVER – links descritivos de todos os artigos da série.
https://editorapangeia.com.br/blog/
Wellington Ferro de Souza.
setembro 9, 2019 - 8:36 pm ·Estou gostando deste site.Muito interessante.
Rauer Rodrigues
setembro 22, 2019 - 12:46 pm ·Caro Wellington Ferro de Souza,
Muito obrigado pelo comentário e pela interação.
Cordial abraço.
Rauer.
Rauer Rodrigues
setembro 22, 2019 - 12:49 pm ·A Série A ARTE DE ESCREVER tem publicações semanais aqui no blog da Editora Pangeia.
Para estabelecer diálogo sobre as publicações, fique à vontade para nos contatar pelas redes sociais ou – preferencialmente – nos comentários deste blog.
Um abraço a cada um dos leitores!!!