Os poemas de Umematsuri e de Chumbo Sutil, dois livros recentes de Nima Spigolon, são muito diferentes entre si – e mostram uma poeta embebida por diferentes tradições poéticas e existenciais e os livros nos apresentam duas diferentes dicções.
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Vejamos em detalhes cada uma dessas vozes que coabitam o estro criativo de Nima Spigolon.
O POEMA DESMANTELADO EM CHUMBO SUTIL
Rauer
Chumbo Sutil é livro cujos poemas bebem nos modernismos e suas várias correntes, do início do século XX a nossos dias, e se vale da espacialização da folha na composição poética, trata dos paradoxos da vida cotidiana no século XXI, reflete as angústias íntimas das consciências esfaceladas dos nossos dias, nesse segundo decênio do 3º milênio.
A vida se desmantela em todos os rincões planetários.
- Déspotas orientais utilizam a tecnologia computacional e as forças armadas no exercício de um poder estatal que vai muito além do domínio dos antigos clãs;
- a miséria, a fome e as multidões esfarrapadas se multiplicam, inclusive nos países centrais;
- a espoliação atinge os fundamentos do contrato social, com a precarização das condições de trabalho;
- a radicalização política chega a níveis inauditos, rompendo laços familiares;
- O financismo bancário vampiriza a todos;
- a solidão, a falta de perspectiva, a desilusão com lideranças corruptas, a ganância e insensibilidade das elites econômicas geram desânimo, anomia, desilusão pessoal e desengajamento coletivo.
A enumeração poderia seguir por mais itens e itens, mas voltem-nos para a representação do mundo contemporâneo nos poemas de Chumbo Sutil: na forma e no conteúdo, os versos de Nima Spigolon exalam o paradoxo, o oxímoro contido já no título da obra.
A palavra “chumbo” evoca matéria dura, cinza, industrial… é um metal pesado, pouco corrosível, opaco, denso, estável apesar do baixo ponto de fusão… foi muito utilizado nas artes gráficas, nas máquinas de linotipo, embora altamente tóxico… a palavra tem amplo uso, também, no âmbito das artes bélicas, sendo sinônimo de munição, de projéteis de armas de fogo.
Em suma, “chumbo” indicia universos disfóricos, negativos, malévolos, opressores, tristes ou entristecidos, púmbleos, sombrios.
Por seu lado, a palavra “sutil” é um contraponto, uma modalização positiva, uma diminuição da negatividade do substantivo que qualifica… indica um sentimento de carga positiva, que do aspecto tênue e quase efêmero dá ao chumbo algo de delicado, de elemento dotado de configuração estética, que pode conter algo primoroso…
O chumbo se humaniza, se “derrete” no humano, se constitui em objeto de arte – e tal metáfora bem nos diz o que são os versos de Nima: de uma sociedade brutal, das convivências estupidificadas, do encontro com o amor em um mundo árido, ela faz seus poemas.
Representando em termos formais o paradoxo semântico, os poemas surgem como móbiles que se desmontam, como retalhos em patchwork, simulam e encenam recortes que se somam, se contradizem, se unem em aporias.
Vejamos dois exemplos.
Na última capa do livro, lemos:
língua
arrepios
poros
afetos
corpos
vida-viço
cio-ciclo
Temos, assim imaginamos, um poema, na íntegra, na completude do ato de amor, da sexualidade plena, do viço do cio que perfaz um ciclo na vida, embora seja só um momento, o momento em que a língua toca poros e corpos, gerando afetos e arrepios.
Mas, na página 26, o poema está com 14 versos em sete estrofes – é, pois, um outro poema, que não reproduzo para que o leitor, com o poema, se deleite tendo o livro em mãos. O movimento da poeta, do poema interno para o poema na 4a. capa, foi de desmonte, foi de recorte, foi de edição, e assim nos desvela um universo diverso.
Outro exemplo da técnica da desmontagem está na sequência de poemas com os dias da Semana: Dom / Seg / Ter / Qua / Qui / Sex / Sab – a partir da base das folhinhas, dos calendário, Nima Spigolon indica, sucessivamente, palavras completas, que lidas em sequência, nos dão um novo poema, um poema novo que explode em significados que dialogam com as diversas linhas de força dos demais poemas de Chumbo Sutil:
Dom.us
Seg.redo
Ter.nura
Qua.ntum
Qui.mera
Sex.teto
Sab.ático
No livro, as palavras não surgem do modo didático com que as grafei acima, cujos sentidos intrínsecos na obra vão além dos termos dicionarizados, e que cada leitor reconstruirá na leitura de modo similar às camadas de uma cebola. Há ali diversas palavras: “dom”, “ter”, “mera”, “teto”, “ático”, além das outras mais, compostas, e outras, escondidas; é um jogo instigante esse que faz do calendário uma, passe o trocadilho, “quimera” a nos desafiar.
É preciso tratar também do belo livro que foi realizado: o formato maior, em 16×23 cms, valoriza cada poema; os dois sensíveis textos sobre o livro que precedem aos poemas trazem belas leituras da poesia de Nima; a ilustração da capa e a arte-final da capa de orelha a orelha, assinadas por Ciberpajé, é um espetáculo em si mesmas; as orelhas largas, a primeira com um pequeno trecho da poeta Aira Maiger sobre Chumbo Sutil. e a segunda, com uma única informação biográfica (de que Nima recebeu o Jabuti Acadêmico em 2024), são magníficas (é preciso as ver com o livro em mãos, porque as orelhas de um livro alcançarem um elogio é porque realmente são muito distintas).
A diagramação de Rizera, que criou páginas em negativo e com tonalidades cinzas (púmbleas, chumbo) no início e no final do livro, também merece elogio. Ela existe, constitui uma leitura do livro, mas é discreta, não fica mais importante do que os poemas em si.
A página 5, toda em preto, acolhendo – de Whisner Fraga – um pequeno ensaio sobre o livro, vem de supetão logo após a página de rosto e a página de créditos; assim, ela surge em uma espécie de aviso de que o livro que temos em mãos é bem diferente dos livros que normalmente encontramos por aí.
Assim é esse Chumbo Sutil, de Nima Spigolon: um livro de poemas muito acima do que normalmente encontramos por aí, com uma realização estética muito diferente, muito especial, na forma, no conteúdo e no amálgama entre forma e conteúdo – forma e conteúdo que normalmente não encontramos por aí, .
Rauer Ribeiro Rodrigues
Escritor; Professor; Editor;
Em Travessia
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A POESIA INTERTEXTUAL DE UMEMATSURI
Rauer
No Shúi’wakashú, há o seguinte poema:
kochi fukaba
nini okoseyo
ume no hana
aruji nashi tote
Haru wo wasuruna
(Michizane, Shûiwakashû 16 Miscelânea de Primavera 1006)
O poema foi assim traduzido por Andrei Cunha:
flor da ameixeira
ainda que ausente teu mestre
não esqueças a primavera
quando soprar o vento leste
manda-me teu cheiro
(Cem poemas de cem poetas, Porto Alegre: Class, 2019, p. 23-24)
No terceiro verso, ume no hana, temos a “flor da ameixeira”. Uma tradução mais literal talvez pudesse ficar assim: “Nestas águas / Me acorde / Flor de ameixa // Sem um mestre / Não se esqueça da primavera”.
Andrei Cunha, na “Introdução” do seu livro, comenta:
O amor dos japoneses pela cerejeira é literalmente milenar. No Man’yôshú [de 785], a palavra “flor”(hana) pode se referir à inflorescência de diferentes plantas e árvores. A flor mais popular era a da ameixeira-do-japão (Prunus mude, ume); a cerejeira (Prunus serrulata, sakura) vinha em segundo lugar. A ameixeira, cuja flor serve de brasão para incontáveis escolas em todo o arquipélago japonês, é consagrada à figura de Sugawara no Michizane, deus da literatura […]. Fevereiro, mês de sua morte, marca o fim do inverno e prenuncia a primavera; as primeira árvores que florescem, ainda sob o gelo, são as ameixeiras. A imagem das flores surgindo em meio à neve é associada à persistência diante da adversidade.
A artvista Nima Spigolon (Mamizu, 真水 – Água Doce) traz, em Umematsuri (Festival da Ameixa), muito mais que uma festa da chegada das flores que rompem ainda no inverno: faz uma festa da poesia, de florescimento de pencas de haiku, de pensar o poema nipônico tradicional na clave de sua aclimação aos trópicos brasileiros. É um livrinho gostoso de ler, gostoso de estar na mão, gostoso para carregar, presentear, degustar. E contém a poesia sempre sensível, límpida e clarividente de Nima Spigolon.
Vimos acima que no verso ume no hana, ume se refere à cerejeira, e daí vem o Umematisuri que nomeia o livro. Trata-se, pois, de um topos, de um lugar retórico mais que milenar da poesia japonesa. Trata-se de uma espaço físico, geográfico, em um momento no ciclo da natureza, em que ocorrem festas ligadas às ameixeiras em flor. Mais que intertexto, há uma operação antropofágica, uma. apropriação cultural mais ampla, em que Mamizu festeja a superação das adversidades da poeta Nima.
A profa. Nima Spigolon (Unicamp) faz isso mantendo o diálogo intertextual com a tradição nipônica desde o waka, poema do qual deriva o haikai no renga, o hokku, o haicai, o haikai e por fim o haiku. A nomenclatura se modificou ao longo dos séculos e a nomeação indicia movimento de modificações na forma e no ethos do poema, mas indica que há, também, fortemente, a manutenção das lições poéticas e retóricas da forma [fórma] poética.
A aclimatação temática e formal que Nima realiza em Umematsuri segue preceitos da tradição do haiku, bebendo das fontes clássicas (Bashô, Buson, Issa e Shiki) e das fontes femininas (de Jitô Tennô a Chiyo-Ni, de Ukon a Tskeshita Shizunojo, de Izumi Shikibu a Teruko Oda, deMurasaki Shikibu a Sujita Hisajo, de Daini no Sanmi a Takajo Mitsuhashi, para mencionar apenas algumas).
Por outro lado, embora tenha sempre em vista as dezessete sílabas poéticas (os “sons” ou os mora, no conceito nipônico original), não se intimida se romper a métrica dos versos em 5 / 7 / 5, tendo em vista o ritmo interno e o significado construído. Nesse aspecto, bebe de lições que vêm de Bashô aos haijins brasileiros e às haijins ibero-americanas.
Vejamos alguns poemas de Umematsuri; iniciamos pela epígrafe, um poema da haijin Enomoto Seifu (1732-1815):
ao romper do dia,
em conversa com as flores,
uma mulher só
A tradução de Nima para o poema segue a métrica clássica; cada verso é um segmento frasal completo; o poema coloca em cena momento cotidiano: no início do dia, em solidão, uma mulher conversa com as flores. O universo feminino íntimo, sem convívio social, se apresenta no espaço feminino tradicional, com a casa, o jardim e as flores. No primeiro verso, o dia que nasce traz augúrios, o que o segundo verso também enfatiza, com o zoom do espaço cosmológico, do dia que rompe (e romper é ação de força, que a escolha lexical impõem ao não utilizar o “neutro” verbo nascer) para o espaço fechado, em que há uma conversa com as flores. Conversar é dialogar, é estar o ator integrado ao dia, ao jardim, às flores. Há equivalência de ação, de status e de presença entre o ator que surge na cena com o dia que rompe, vitorioso, e as flores do jardim. O terceiro verso qualifica duplamente esse ator: é “uma mulher” e ela está “só”. O verso que desvela o sujeito poético, que representa o eu-poético feminino autoral, fecha o poema surpreendendo em disforia e em oposição aos eufóricos dois versos iniciais.
O que a epígrafe anuncia é que há adversidades na festa das ameixeiras e que os versos de Umematsuri vão nos revelar as flores e os jardins na travessia por dificuldades existenciais.
Assim, o livro nos apresenta sapos, aves, quintais com frutas, libélulas, o estralejar dos bambus e dos ossos, em panteísmo do corpo humano com a natureza. Os sonhos dos pássaros e da brisa indiciam esperanças. E então
o inverno chega,
sem pressa. Cinza, veludo –
voa a andorinha
Nos ciclos vitais, a chegada do inverso é inexorável, embora “sem pressa”– e aí o poema é cortado com um ponto final no transcurso do segundo verso e o qualificativo do inverno surge com inicial maiúscula; no entanto, o “Cinza” vem logo em seguida qualificado de “veludo”, modalizando-o da cor da tristeza para uma sensação sensorial que é acolhedora e de aquecimento.
O corte, o kireji indicado com o travessão, forja a retórica de uma síntese, de uma explicação, de um acréscimo que cristaliza o momento, e então registra uma andorinha que voa. E o inverno contém em si uma imagem de duplo sentido: é liberdade e indicia libertação.
Mais à frente, a epígrafe parece retomada, em poema que é síntese dos aspectos discorridos acima. Eis o poema:
o voo solitário
e os ventres do céu azul:
a graça – e a vida
A solidão – da mulher, do feminino, do eu-poético quase sempre alter ego da poeta – surge em pleno voo; esse voo se dá sob o céu azul, sob “os ventres do céu azul”, estabelecendo o zoom no indivíduo tendo no macro um aspecto cosmológico, da eternidade do universo físico.
Há o primeiro kireji, sinalizado com os dois pontos do final do segundo verso, e o terceiro verso, com outra marca de corte, com o travessão o dividindo em duas partes, amalgamando duas culturas, a ocidental e a oriental, o mundo das religiões monogâmicas com o mundo simples da concretude, daquilo que simplesmente é: a vida.
Uma obra-prima poética, esse poema, em si mesmo, e na construção poética intertextual e antropofágica que Nima Spigolon realiza; aliás, o livro em seu todo, esse Umematsuri, é uma constelação de pequenas joias poéticas que se sucedem.
Se o tema da solidão é reiterado em outros haikais, o tema do amor também surge, e ainda comparecem diversos kigôs e mesmo menções explícitas às estações, e elas surgem constituindo-se em metáforas da existência: a tranquilidade e tristeza no inverno, a alegria e renascimento na primavera, a vivacidade e o vigor no verão, a melancolia e maturidade no outono. A poeta, a certa altura, declara essa sintonia: “estação em mim”.
Encerremos com o poema que consta na quarta capa do livro:
parecia o fim –
mas o haikai no caminho
me fez continuar
Uma vez mais, duas tradições poéticas, a do haikai e a do poema da pedra no caminho de Carlos Drummond de Andrade. A metáfora da dificuldade é ressignificada em metáfora de alento. As adversidades que anunciam o fim, a derrota inexorável com as vicissitudes da vida, é superada com a poesia, com o constructo do poema, com os haikais e os haiku que transbordam superações neste Umematsuri.
Nima nos lega mais uma obra poética de leitura obrigatória.
Rauer Ribeiro Rodrigues
Escritor; Professor; Editor;
Em Travessia
Obs.: este texto foi publicado em
Posfácio ao livro Umematsuri
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