Dois títulos, recentemente publicados, vêm delinear, com a mesma inteligência e igual intensidade, um momento significativo para nossa literatura, cada um deles dotado de uma personalidade bastante peculiar. Em comum, acusam a coincidência de serem assinados por duas mulheres vivendo e escrevendo em Minas Gerais. Alciene Ribeiro nos traz Mulher explícita, e Branca Maria de Paula é responsável por Nanocontos. Com grandes diferenças formais, abraçam o mesmo gênero literário, constituindo duas bem-sucedidas coletâneas de contos.
Desde o título, o eu feminino comanda os contos de Alciene Ribeiro em Mulher explícita. São 23 histórias com o mesmo tema, mas com diversas variações: de linguagem, enfoque narrativo ou personagens. Explorando o discurso da sutileza, subvertendo expectativas do leitor, a autora, ciente de seu domínio formal, esmera-se na construção de cada texto, dispondo de largo inventário de recursos criativos.
Entre textos mais longos, os curtos assemelham-se a um flagrante do momento desestruturador, em que o leitor se comporta como espectador de uma cena inacabada, ainda na iminência de ser apreendida. Suas capacidades dedutivas e interpretativas são acionadas para que a atenção aos poucos e decisivos detalhes revele o que aconteceu sem ter sido pormenorizado. É o caso tanto do texto inicial “Independência ou morte” quanto de “Núpcias”. Das duas vezes nada é dito diretamente nem há luz suficiente lançada sobre as cenas. Os títulos funcionam como metáforas plenas de ironia. Uma forma inteligente de contornar a crueza com que a realidade do mundo ou certos homens podem tratar as mulheres.
Entram em cena criaturas de todas as idades, desde a ainda menina de “Boné vermelho”, intertexto bem elaborado a partir da simbólica puberdade da heroína do clássico “Chapeuzinho vermelho”, até o mergulho na dependência e na decadência da velha matriarca descrita em “Abelha-rainha”. Mulher urbana ou rural, mãe, dona de casa, amante ou não sabendo mais amar, enlouquecida ou independente – várias faces do feminino revelam, entre desventuras e limitações sociais, a penosa consciência de uma trajetória subjacente aos muitos exemplos, com pontos agudos de semelhança.
O lado feminino da humanidade manifesta-se, explicita-se, com tudo que lhe é próprio, enfatizando as relações com os homens. Sensuais, patéticas, ameaçadas, usadas, abusadas, com desejos de vingança, cada uma dessas mulheres ganha voz, expressando sua passagem pela vida. Uma pequena obra-prima é “Contrassenso”, com a heroína dividida entre conformar-se ou reagir, atenta à mesma duplicidade presente no corpo, dos olhos aos seios.
Confortável no manejo inusual da língua, Alciene nos surpreende, incisiva, com frases de colorida ambivalência, como “gente prestimosa parece elegê-la a primeira-dama do funeral” ou “a pressão chia protesto na panela, e o feijão cheira queima de arquivo”.
Duas das suas narrativas revelam experiências mais ousadas com a linguagem. É o caso de “Uai, sô”, fusão de lirismo e coloquialismo regional, e da tensa mistura de falas presente em “Aviso prévio”.
Mulher explícita traz de volta à literatura brasileira e mineira um de seus nomes mais competentes, ausente por um tempo relativamente longo, junto com a promessa da autora de que outros títulos virão. Estaremos à espera de novas revelações de sua escrita sempre vigorosa e das tramas firmemente conduzidas, intensamente humanas.
Nanocontos, de Branca Maria de Paula, mais do que a busca e o compromisso da autora com a concisão, surpreende pelo diálogo, na forma de um apurado exercício metalinguístico, com a própria montagem e apresentação do livro.
A capa em preto e branco mostra uma fenda numa superfície que se rasga e se consome. Este é um dos temas que serão abordados pelos textos curtos e que geram uma infinidade de significados. Várias fotografias de ilustrações feitas pela autora integram a obra, produzindo um efeito abstrato por meio de manchas, ranhuras e texturas.
Abstração semelhante está presente nos textos, agrupados não em partes, mas em modos. Funcionam de uma maneira sugestiva, sem descrever ou abordar qualquer minúcia de cenas de encontros e separação. Muito menos amplificam a angústia das perdas, incluindo a morte, o envelhecimento e a agonia diante de momentos sem saída.
A estrutura do livro é especular. Assim, o início é invertidamente refletido no final. Um “Prelúdico”, seguido por um “Versus leitor”, é concluído com um “Poslúdico” e um “Versus livro”. Aludem a uma das epígrafes prévias, na qual uma corda ou um fio mantém suspensa a leitura, como alegoria da existência, sujeita ao roer de ratos.
Imagens da mesma ordem, como arquivos corrompidos ou cupins que trituram muletas, entremeiam os mínimos contos, a própria escrita questionada entre anotações de sentimentos de desaponto e desencontros sexuais ou na percepção da marcha inevitável e inegável do tempo.
Finitude constatada, na convocação a coveiros, viúvas e almas penadas, ganha compensação em flashes de lirismo, mesmo contaminados pelo absurdo. Assim o eu que narra diz, em “Excessos 2”, “já não quero amor ou coisa que o valha. Nem mesmo a quinta ponta da estrela me faz falta”, ao que replica a mesma voz mais tarde: “Dia que se quer. Noite que se faz. Tarde que assombra. E morcegos a cortar o céu, rente à madrugada”.
Nos seus Nanocontos, Branca Maria de Paula propõe ao leitor um jogo de sagacidade e provocações, conduzido pela decifração do mistério que envolve a intricada relação entre leitura e escrita.
Mulher explícita, de Alciene Ribeiro. Pangeia Editora, 2019, 208 páginas. R$ 48,90.
Nanocontos. de Branca Maria de Paula, Quixote + Do, 2019, 116 páginas, R$ 40,00.
Resenha escrita para o jornal “Estado de Minas” por Isalino Silva de Albergaria, Lino de Albergaria, em 23 de dezembro de 2019.
Lino de Albergaria é escritor, autor, entre outros títulos, do romance O homem delicado (Quixote + Do, 2019).