“Resgate”, de Flávia de Queiroz Lima, por Antônio Sérgio Bueno

A cada 15 dias, publicamos um poema ou resenha da escritora, poeta, compositora, resenhista, cronista, sarauzeira, mãe, mulher e trabalhadora Flávia de Queiroz Lima. Flávia publicou em 2023, no selo de literatura Edições Dionysius, da Pangeia Editorial, Laços e Avessos. Também de Flávia, a Loja da Pangeia comercializa Arrumar as Gavetas. Trazemos hoje um poema inédito da Flávia,  escrito neste mês de maio, e que vem acompanhado de uma leitura interpretativa do Prof. Antônio Sérgio Bueno

RESGATE

Cavalgo sem rédeas
um potro indomável.
Yeda Prates Bernis

Em que lugar de mim morava essa imprudência
que me inundava assim sem boia, sem aviso?
O que estancava o medo em meio à travessia
e me ensinava o olhar inverso, o improviso?

Revolvo anotações, desligo o falso alarme,
Acordo sensações, desentranho memórias…
Se ao menos contivesse a areia que ainda escorre
nessa ampulheta, me escoando a trajetória…

Desvencilhava-me da pressa fustigante
e resguardava a intimidade do silêncio.
Na convivência dos desejos impensados
calcava esporas contra a direção do vento.

Cortava atalhos no entrelace das esperas,
sobrevoava o espaço incerto das distâncias,
inaugurava um território aberto à dúvida
e um dialeto que adentrasse nas lembranças.

Ao desvelar as reticências, as nuances
sem descuidar do que nos move nesse embate,
me reinvento – um tempo todo no presente
e a sensação imensurável de um resgate.

Flávia de Queiroz Lima
5.05 2024

O PREÇO DO RESGATE

                  Antônio Sérgio Bueno*

Ao iniciar a leitura do poema RESGATE, de Flávia de Queiroz Lima, percebo de imediato o acerto da escolha feita pela autora de uma estrutura de cinco quartetos em versos alexandrinos (12 sílabas), cuja amplitude métrica corresponde perfeitamente à largueza do itinerário do eu-lírico em busca do resgate de si mesmo.

Perfeitamente inserido na linha de rigor formal e elaborada complexidade que identifica a poética de Flávia, neste RESGATE, a meu ver a poeta consegue se superar para alcançar uma excelência cujo limite seria o encontro de um ótimo enunciado com a melhor enunciação possível para dizê-lo.

Passo então a registrar algumas observações feitas no esforço para resgatar (o emprego deste verbo é intencional) alguns significados que me parecem relevantes neste desafiador poema:

PRIMEIRA ESTROFE

Muito bem escolhida a palavra “imprudência”, no verso inicial, sugerindo as primeiras inquietações libertárias do sujeito poético. As formas verbais no pretérito imperfeito (“morava”, “inundava”, “estancava” e “ensinava”) me autorizam dizer que tal “imprudência” é um primeiro deslocamento, que se desdobrará no “galope do potro”.

“Potro indomável”, aliás, que é enunciado na epígrafe, tirando o eu-lírico de certa zona de conforto e deixando-o um tanto à deriva (“sem boia”).

Abre-se o olhar na contramão, o “olhar inverso”, ainda com a insegurança do “improviso”.

É a única estrofe escrita sob o signo da interrogação, formalizada nos pontos de interrogação terminais do segundo e quarto versos.

SEGUNDA ESTROFE

Ao remexer suas anotações, o sujeito poético inicia seu mergulho nas próprias memórias. Pode até ser que ele tenha desligado o “falso alarme”, mas o “verdadeiro” alarme continua ligado.

As sensações recordadas (etimologicamente devolvidas ao coração) invadem o presente, trazendo consigo as formas verbais “desligo”, “desentranho” e “escorre”.

As reticências do segundo e quarto versos apontam para a aventura do devir.

TERCEIRA ESTROFE

A resistência do sujeito poético aos “desejos impensados” nasce no “silêncio”, que lhe fornece as “esporas” para instigar o cavalo contra o vento.

De passagem, lembro os versos de Caetano Veloso: “Caminhando contra o vento, sem lenço e sem
documento, eu vou…” Sem documento, mas no caminho da própria identidade.

Esta estrofe me parece encenar o início da luta do eu-lírico para colocar alguns limites nos desejos intempestivos e suas consequências desastrosas.

QUARTA ESTROFE

Com a forma verbal “sobrevoava” (antes do mergulho final), os dois versos iniciais parecem falar da pressa que os desejos têm de se concretizar. Mas os dois versos finais procuram frear essa vertigem, introduzindo a “dúvida”, que vai abrir o caminho para a retomada de algumas rédeas apenas pelo sujeito poético.

No último verso da quarta estrofe, a escolha da palavra “dialeto” parece retomar o poema TALISMÃ, que abre um dos livros de Flávia, o Arrumar as Gavetas:

A poesia é tão clara
que nos fala em dialeto
repleto de sons da infância
balbuciados de novo
como num jogo… as figuras
nos recompondo os pedaços.

Essa é uma leitura bem pessoal das próprias lembranças.

QUINTA ESTROFE

Parece-me que aqui se completa o “resgate”, depois de o sujeito poético pagar o preço das dívidas, medos e angústias, numa jornada que às vezes foi caminhada, outras vezes galope, quase sempre “embate”.

Decifrar nuances e reticências é antever e começar a trilhar uma última etapa, agora rumo a um porto que se chama finitude e que já está visível para o eu-lírico.

Chamo a atenção para o fato de que, pela primeira vez no poema, aparece o pronome oblíquo “nos”, que rompe a bolha de um “eu” que se olha no espelho da memória e inaugura outro “eu”, reinventado pela voz poética.

Essa passagem do “me” ao “nos” é o modo que a linguagem encontrou para identificar o novo rosto do sujeito poético.

Ao terminar a leitura de RESGATE, vejo que o “potro” continua “indomável”, mas agora tem um rumo. O sujeito poético já aceita algumas “rédeas” que encaminham os ímpetos dos desejos para as margens da lucidez, assim como águas encontram seu leito e fertilizam a própria vida. A última palavra do poema é “resgate”, que me remete ao próprio título, perfazendo um movimento circular, que figura o périplo de uma vida.

* Antônio Sérgio Bueno é mestre em Literatura Brasileira e doutor em Literatura
Comparada pela UFMG. Publicou O Modernismo em Belo Horizonte: década de vinte
(1982), e organizou o volume Affonso Ávila (1993). A publicação Vísceras da
memória: uma leitura da obra de Pedro Nava (1997) apresenta sua tese de
doutorado. Tem o ensaio “A subversão barroca e outras subversões nas
memórias de Pedro Nava” publicado no livro Literatura mineira:
trezentos anos, editado pelo BDMG Cultural em 2019.
É professor aposentado da UFMG.


Flávia de Queiroz Lima

Poeta, letrista e compositora, é ainda sensível leitora de ficção e de poesia, escrevendo pequenas e densas resenhas de suas leituras. Atua profissionalmente, hoje, na AML – Academia Mineira de Letras, em Belo Horizonte. Publicou quatro livros de poemas em quarenta anos: Círculo de Giz (Vigília, 1983), Arrumar as Gavetas (acompanha CD, 2012), Sobre Viver (Caravana, 2019) e Laços e Avessos (Dionysius / Pangeia, 2023).

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