Os vários Paulos de “Paulo Freire: Cronografia”

Há vários Paulos em Paulo Freire, e é preciso reinventá-lo em nossos dias – o que Nima Spigolon realiza em seu novo livro. As três afirmações estão no prefácio do Prof. Afonso Celso Scocuglia ao livro Paulo Freire: Cronografia, de Nima Spigolon, que está em pré-venda até 5 de maio de 2025.

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Confira abaixo, em primeira mão, o prefácio do livro.

Os vários Paulos Freire

Afonso Celso Scocuglia *

Concordo com a premissa de que um(a) grande pensador(a) precisa ser datado(a). Como entender A Ideologia Alemã e O Capital, obras de momentos diferentes de Karl Marx, primeiro com Engels e depois solo, sem datá-las? Como entender Hanna Arendt sem localizá-la no seu tempo histórico? Como compreender Guimarães Rosa sem localizar suas veredas históricas? Ou a poesia/música de Caetano Veloso, antes e depois do exilio, ou mesmo nos nossos dias? Ou, ainda, os escritos de Clarice Lispector no seu tempo determinado? Mesmo o fato de serem considerados atemporais, pela atualidade das suas ideias, suas compreensões não prescindem do acompanhamento de suas trajetórias históricas.

Assim, indicar as datas das trajetórias de Paulo Freire e Elza Freire tem uma importância e um significado ímpares, especialmente, porque vida e obra em ambos são inseparáveis. Depois da pesquisa de Nima Spigolon e as respectivas publicações de Elza Freire e Paulo Freire: por uma pedagogia da convivência (2022) e Elza Freire e Paulo Freire: noites de exílio – dias de utopia (2023), tal indicação ficou ainda mais evidente e definitiva para compreender as propostas e os conceitos que tornaram Paulo Freire um dos gigantes da educação e da pedagogia contemporâneas.

Inclusive por meio de sua presença internacional cada vez mais destacada, pela contínua exposição mundial de Pedagogia do Oprimido (1968) e outros livros que o colocaram entre os pensadores mais referenciados (em língua inglesa) de todas as ciências sociais, humanas e da educação do mundo na atualidade. 

Também, a meu ver, por um fato ainda a ser melhor notado: quando o Relatório Jacques Delors (UNESCO, 2000), produto da reunião de pensadores e especialistas das Ciências da Educação de todo o mundo, colocou a “aprendizagem e a educação ao longo da vida” como principal temática da educação do século XXI se inspirou evidentemente em Freire. Ou seja, a defesa feita por Freire da educação das crianças, mas, também dos jovens e adultos, desde os anos 1940/1950 até o tempo presente, ganhou ainda mais relevância e atualidade com o Relatório da UNESCO sobre as prospectivas educacionais da contemporaneidade. E, repetindo Spigolon, não teria sido realizada sem Elza Freire na conturbada segunda metade do século XX.

Por outro lado, necessário repetir que a obra de Freire é datada e percorre várias etapas [ver nosso livro A história das ideias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas. Editora da UFPB, 2019, 7a. edição (disponível em e-book)], especialmente entre 1947 e 1997. Podemos dizer que existem “vários Paulo Freire”. Sem esquecer que essas etapas são entrelaçadas e amalgamadas e que a necessidade de entendermos os eixos centrais da prática-teórica do pensador brasileiro impõe a imperiosa tarefa de compreendê-lo na totalidade dos seus escritos nos 50 anos acima datados.

Fácil perceber que o trabalho sequenciado à frente da educação do SESI de Pernambuco / Brasil, durante uma década a partir de 1947, depois na Universidade do Recife e, lá mesmo, no Serviço da Extensão Cultural (SEC-UR), além da coordenação do Plano Nacional de Alfabetização do Governo Goulart (1963-1964), formam o Paulo Freire do Recife, de Pernambuco e do Brasil durante 17 anos (1947-1964). E vão desembocar no golpe civil-militar de abril de 1964 cujos executores o processaram (em dois Inquéritos Policiais Militares – IPM) e o prenderam por quase 80 dias. Nos dias de prisão não faltaram a feijoada e a presença altiva de Elza Freire, além dos muros do quartel, mas sempre perto.

Tempos tensos de medo crescente até sua saída para o exílio, depois de ser ameaçado de morte. Foram 16 anos sem Brasil, para um telúrico como Freire. Só retorna com a Anistia de 1979/80. No exílio chileno escreve duas das suas obras mais importantes: Educação como prática da liberdade (1965) e Pedagogia do Oprimido (1968). Depois trabalha por quase um ano na Universidade Harvard (Estados Unidos). Segue o período mais importante do seu exílio no trabalho educativo no Conselho Mundial de Igrejas (Genebra) durante a década de 1970 e, de lá, as contribuições com os países africanos de língua portuguesa recém-descolonizados – descritas em Cartas a Guiné Bissau (1980).

Na volta para o Brasil nos anos 1980 vai lecionar na PUC-SP e na Unicamp, torna-se Secretário Municipal de Educação de São Paulo (1989-1991), assessora os contextos educativos geridos pelos movimentos sociais, ajuda a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT) e segue trabalhando. Reconhecido mundialmente e agraciado com vários Doutor Honoris Causa. Andarilha pelo Brasil e pelo exterior, escreve abundantemente (sempre o fez) e falece quase no final do século XX aos 75 anos. Deixa muitos escritos inéditos, atualmente publicados sob coordenação de Ana Maria Freire. 

Esta trajetória foi composta de muitas estadias/lugares/equipes diferentes: Recife/Brasil, Santiago do Chile, Estados Unidos, Genebra, África, retorno a São Paulo / Brasil na derrocada da ditadura que o havia exilado. Muitos grupos de trabalhos, conferências, escritos dialógicos, intervenções, gestões… marcaram essa trajetória. Deixando evidente que, pelo fato de sempre focar e ser erigida por práticas diferentes, é que sua teoria foi mudando, sendo construída e reconstruída ao longo do seu tempo histórico. 

Nima Spigolon nos mostra que grande parte dessa construção/reconstrução teve Elza Freire como sua primeira leitora/revisora e principal timoneira da cotidianidade da família Freire, portanto, essencial para que a obra escrita do educador brasileiro pudesse emergir.

Para evidenciar tal construção sequencial e reconstrutiva basta observarmos as palavras de Freire em alguns momentos de Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Ele diz, por exemplo, que para chegar à Pedagogia do Oprimido foi essencial passar pelo SESI-PE (1947-1957), pela escrita da tese Educação e Atualidade Brasileira (para concurso na Universidade do Recife, 1959), por Educação como prática da Liberdade (1965) até produzir (como sequência dos trabalhos citados) o seu livro mais lido, traduzido e referenciado mundialmente (terminado em 1968, publicado em 1970, hoje na 87ª. edição brasileira). 

E por que o autor de Pedagogia da Esperança (de 1992) quer o reencontro com a Pedagogia do Oprimido (de 1968), explícito no próprio subtítulo do livro escrito depois de quase 25 anos? Resposta simples: para rever conceitos, categorias e propostas e atualizá-las, além de fazer autocríticas! E, inclusive, deste prisma, chamar atenção para as temáticas da “pós-modernidade progressista” como faz nos anos 1990. Mais uma vez torna-se evidente a necessidade de compreender a sua obra na totalidade e, não, em partes estanques. Claro que, neste caminho, necessitamos datá-las para compreendê-las. Precisamos de uma Cronografia.

Poderíamos marcar aqui vários outros acontecimentos históricos para justificar a necessidade de construir uma cronografia.

Reitero: não conseguimos entender Paulo Freire sem acompanhar sua trajetória histórica, suas várias etapas diferentes, como homem do seu tempo e marcado pela história tantas vezes reconstruída no Brasil e no exterior. Pelo mesmo fato, não compreendemos seu legado sem entendê-lo como expressão dos vários coletivos nos quais trabalhou. Paulo Freire nunca falou sozinho. Sempre falou como parte de uma equipe, de um projeto, de uma instituição ou de um movimento social. 

Seu discurso polifônico é produto de trabalhos sempre coletivos/dialógicos a começar com Elza Freire, no SEC-UR, na reforma agrária no Chile, em Havard, no Conselho Mundial de Igrejas (com o IDAC e países africanos) ou, ainda, na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (com uma equipe formada por educadores/as de diversas origens acadêmicas). Freire nunca esteve sozinho. Segundo Carlos Rodrigues Brandão, ele “não sabia trabalhar sozinho”. Portanto, datá-lo também significa datar as contribuições de tantas práticas e diálogos teóricos efetivados com as pessoas e os grupos com quais trabalhou em diversos contextos.

Necessário repetir que com Freire estamos diante de uma obra sequencial, plural, permanentemente reconstruída pelos olhos das práticas educativas e cujos eixos centrais nos guiam pelos caminhos nunca lineares da sua própria existência enquanto intelectual engajado e progressista. A superação de problemas e os respectivos avanços, assim como a disseminação das ideias freirianas mundo afora, por exemplo, guardam relação direta com os contextos históricos vivenciados pela sua família no Brasil pré-1964, no Chile, nos Estados Unidos, em Genebra e, depois, na volta para São Paulo.

Seu legado continua a impactar a educação em dezenas de países neste primeiro quarto do século XXI e, certamente, continuará no futuro. A imensa profusão de lives, dossiês, livros, artigos, seminários e debates ocorridos recentemente no centenário do seu nascimento (1921-2021) constitui prova inconteste da potência do seu legado.

Por tudo isso, e pelo breve exposto aqui realizado, esta cronografia (descrição dos tempos pela história dos fatos neles acontecidos) torna-se essencial. E, neste sentido, o trabalho de Nima Spigolon é fundamental, sobretudo pelo acompanhamento histórico da parceria amorosa / educativa entre Elza Freire e Paulo Freire. Contribui, ainda mais, para o brilhantismo dos livros antes citados e da sua autora o prêmio Jabuti Acadêmico de 2024. 

A rigor, a trilogia construída por Nima Spigolon responde a uma solicitação do próprio Freire no sentido de reinventá-lo. Uma das vertentes dessa reinvenção, agora amplamente reconstruída pela autora, passa pelas mãos educadoras de Elza Freire – sem as quais Paulo Freire não seria o mesmo e não teríamos o privilégio contemporâneo de conhecer as suas vidas e as suas obras inseparáveis. 

Ademais, a convivência amorosa de Elza Freire e Paulo Freire, na vida e no trabalho, nas noites de exílio e nos dias de utopia, nunca será vista da mesma maneira depois das pesquisas de Nima Spigolon. 

Afonso Celso Scocuglia
Professor Titular da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB)
João Pessoa, Outubro de 2024.

Na imagem: O casal Elza Freire e Paulo, por Claudius Ceccon, Rio de Janeiro, Brasil, abril, 2014. Fonte: Acervo de Nima SPIGOLON (publicado em sua tese, 2014, e no livro Elza Freire e Paulo Freire: noites de exílio, dias de utopia (Pangeia, 2023).

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