A leitura de crítica literária se transformou muito desde o advento da impressa, no modelo dos jornais do século XIX, chegando à babel midiática internética dos nossos dias. Ao rodapé impressionista dos jornais, de cunho o mais das vezes de exibição bacharelesca de leituras acumuladas, seguiu-se o hermetismo terminológico das diversas correntes críticas universitárias. Com a literatura expulsa dos espaços da mídia tradicional, sua repercussão cotidiana se dá, atualmente, por micro-resenhas em blogs e em redes sociais. E foi no Instagram de @gabriela.gh.vescovi que encontramos publicação sobre o livro De(s)Morte(s), de Nima Spigolon, comentado ao lado do livro Diário dos Ecos Pandêmicos, de Elisa Coelho.
Esse espaço novo de manifestação de leitura literária gera, ainda, possibilidade de interação de maior rapidez e mais vivacidade que as antigas “Cartas do leitor”. Reproduzimos abaixo os comentários de Gabriela Vescovi e o diálogo subsequente com as autoras dos dois livros.
Preciso falar das últimas leituras de forma conjunta: Diário dos Ecos Pandêmicos, de Elisa Coelho (ed. Voz de Mulher, 2021), e De(s)Morte(s), de Nima Spigolon (ed. Dionysius, 2021).
Há tempos estava postergando essas leituras. Não me sentia pronta para ler nada íntimo ou testemunhal sobre a pandemia, não queria ir para além das notícias e lembranças. Fazendo um esforço tremendo para recordar o tempo, entendo que os últimos três anos foram muito difíceis para mim. A pandemia de covid-19 mudou a vida de todos, rompeu paradigmas, alterou nossa forma de entender o mundo, de nos relacionarmos, de pensarmos o tempo e o espaço. Foi (e ainda está sendo) um evento trágico e imenso, sobre o qual ainda não sabemos falar muito, ou digerir, enquanto sociedade. Penso que ainda estamos no processo de compreender tudo isso e as mudanças decorrentes, e, como a dor está fresca, é difícil elaborar o que vivemos desde 2020. O tempo está tão estranho que, para mim, ambos os livros eram de 2022 (significa que estou mais de um ano atrasada). À beira de 2023, vemos a China enfrentando mais uma terrível onda de infecções por esse vírus mortal. Muitos mortos no primeiro ano; ainda hoje, muitos mortos. Uma parte de mim gostaria de parar o tempo, ou ao menos minha vida, para poder ouvir todas essas vidas que se foram e as tantas que ficaram, em sofrimento, e poder chorar para sempre. A outra quer esquecer. Uma outra se criou para conseguir ir adiante. Digo tudo isso para contar que decidi começar a enfrentar esse vazio que faz verter tantos sentimentos em nós, lendo arrastada e dolorosamente as primeiras publicações que chegaram até mim. De duas grandes mulheres, mineiras, pesquisadoras e professoras, escritoras e poetas que muito me inspiram. Estava em débito até agora, me desculpem, já havia tentado começar a leitura, mas só na semana passada pude recomeçar, com outro fôlego, e finalmente, hoje, finalizar.
Sobre os livros, segue nos comentários:
@elisadcoelho
@rosanina.rubra
#covid #pandemia #leiamulheres #leiamais
Sobre o Diário dos Ecos Pandêmicos, foi o primeiro que enfrentei. Não acho que pudesse ser diferente: o diário não registra as datas das anotações, não marca a passagem do tempo de forma objetiva e concreta, apenas enumera escritos, às vezes em prosa, às vezes em verso, que se apresentam ao leitor ao lado de imagens. Acompanhei o início desses escritos, quando ainda nem se pensavam em publicar como livro, depois não conseguia mais ler tudo. Agora, felizmente, li tudo que perdi, com cabeça melhor para receber essa enxurrada que Elisa propõe. É uma enxurrada de sentimentos, dúvidas, intimidade. É uma forma de acompanhar o dia-a-dia de uma vivência específica entre as muitas outras que atravessaram a pandemia. Em isolamento completo, vivendo sozinha e com gatos, a autora registra o avançar dos dias, os altos e baixos da esperança, o medo, a angústia e muitas reflexões. Qual o lugar da delicadeza nesse tempo? E o que cabe à arte? Como viver e lembrar esse período? A estreia de Elisa em livro não tenta responder essas e outras perguntas de forma cabal; ao contrário, ela usa sua vivência da dança para seguir o ritmo dos pensamentos. As hesitações não são apagadas do texto; o diário não tenta se lapidar e se apresentar como algo polido e pronto, ele abraça o processo da escrita, com parênteses, itálicos, suspiros, imagens, riscos – essa dança das palavras não tenta ser bonita. Mas o bonito de tudo é que é uma voz que tenta, que se abre e que faz ecoar em quem lê muito do que se viveu. É, finalmente, um testemunho de um trauma social e individual doloroso, ainda em curso e ainda por ser elaborado. É triste o que vivemos, mas Elisa procura as nesgas de beleza que permitem nutrir alguma esperança para, com arte e coragem, seguirmos.
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Sobre De(s)morte(s), comecei antes, terminei depois. Nima faz o esforço de pôr em versos sua vida no confinamento. Também amante de queijo, café e vinho, a autora traz os pedaços deliciosos e os doídos que se amontoavam enquanto vivíamos a espera pela volta do velho mundo. A sexualidade está marcada nessas páginas, mas não só disso se constrói a intimidade desses poemas. Para além dos desejos, há a tristeza imensurável, a conformação às lágrimas, as lágrimas; há a incredulidade com as atrocidades políticas, com a insensibilidade dos representantes do governo à época, com as notícias sufocantes. Acompanhamos poemas de diversas formas, fixas ou não, que trazem os dias, as dores e as dúvidas de quem viveu esse tempo. Seu mundo mental não cabe ali, as mudanças da autopercepção e da autocompreensão não cabem ali, mas dão frutos: esses textos múltiplos que trazem a voz de Nima, sua vivência, sua transformação junto ao tempo. Como todos nós, o sujeito dos poemas está atravessando um período complexo e está mudando, e felizmente não tem a pretensão de se fingir seguro, estável ou corajoso a todo tempo. Na diversidade de temas e formas, mostra a complexidade de si.
Obrigada, Elisa e Nima, por serem tão queridas, inspiradoras e pacientes com uma leitora lenta que temia se encontrar demais nas palavras de vocês e, assim, desmoronar. Com um pouco mais de tempo, pude apreciar e pensar, não apenas doer, com bravas tentativas de apreender um pouco do que vivemos. Obrigada por me atravessarem com seus livros e me ajudarem a elaborar a vida!
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Percebi que não postei a versão final kkkkkk mas como não dá pra editar comentário, vai ficar assim
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@gabriela.gh.vescovi , minha amiga, chorei aqui, de alegria por me ver lida por você (que encontro tão bom ver meu texto com seus grifos) e de emoção que enfim você tenha conseguido dar o passo de fazer essas leituras. Não há nunca o que se desculpar, meu livro está aí, no mundo, como conversa em aberto, para quando chegar o momento de cada um elaborar a sua Pandemia. Te agradeço pela escrita afetuosa e generosa sobre meu texto e te abraço com muita alegria por essas leituras, esses encontros, esses passos no caminho para se entender e se fortalecer para além de tanta coisa difícil que vivemos. Que feliz você me fez hoje! Abraço enorme em vocês todos ❤️
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A vida é feita de encontros. E hoje, a minha vida se abriu como um pacote lindo que chegou de presente para o presente e em época de esperançar… gratidão @gabrielaghve por me apresentar @elisadcoelho 😍❤️ @gabriela.gh.vescovi sua leitura foi tão esperada, tão esperada, que parecia não acreditar… vale a pena esperar pelo que vale a pena receber assim. Com um grande abraço de admiração literária, afeição fraterna e gratidão poética
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@rosanina.rubra desculpa a demora, Nima, ficarei devendo a resenha mais estruturada, mas fico feliz por ter finalmente enfrentado a leitura e conhecido sua voz poética! 😍😍😍😍😍 obrigada!!!
@gabriela.gh.vescovi sem culpas nem desculpas, e com toda alegria desse encontro que em seu tempo nos reconforta o coração e anuncia novos tempos. Gratidão pelas leituras e por existir na minha vida.
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