Carta em Defesa da Democracia

Democracia – do grego, demos + kratia, significa, na frase que abre a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Na etimologia, “demos” significa POVO e “kratia” significa PODER – em outras palavras, DEMOCRACIA é o poder exercido em nome da coletividade, conforme o pacto social constituído no documento fundador da ordem pública, a Constituição. No preâmbulo da Carta Magna Brasileira surgem os elementos basilares que norteiam o ordenamento do país sob a perspectiva que nos legou Assembléia Nacional Constituinte:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Neste dia 7 de agosto de 2022, dia de particular importância para nós da Pangeia Editorial, na nossa história como empresa vocacionada a publicar democraticamente muitas das contrastantes vozes da nossa sociedade, sob os influxos culturais que ao longo dos milênios nos forjou, legando-nos a atual aldeia global planetária, e na semana em que diversos atores da sociedade brasileira se manifestam na defesa da nossa democracia e em favor da realização plena dos pressupostos da Constituição Cidadã de 1988, reproduzimos um conto de um de nossos autores, assim constituindo a nossa CARTA EM DEFESA DA DEMOCRACIA.

Editores, Curadores e Autores
Pangeia Editorial

E FORAM FELIZES PARA SEMPRE
Rauer

UMA FILA DE QUARENTA ALUNOS havia se formado após o sinal de entrada. A tabuleta na porta indicava:

3º ano
I grau

Um dos meninos esticou o braço adiante do colega da frente, e passou a mão em um outro.
– Opa!, sai daí.
– Tá arisco, hem?
– Psiu – fez a professora, chegando. – Quê que é esse barulho?
Todos ficaram em silêncio. A fila estava dividida em dois blocos: à frente, as meninas; por último, os meninos. Entraram na classe e a professora cerrou a porta.
– Bom dia.
– Bom dia – responderam em coro.
Ao terminar a chamada, a professora disse que iria contar uma estorinha por causa do bom comportamento da turma quando a delegada de ensino visitou a escola.
– Mas, antes, vamos rezar, né, gente?
Todos ficaram em pé, fizeram o sinal-da-cruz e acompanharam o Pai-Nosso e a Ave-Maria. Depois, repetiram o que a professora falava. Ela desejava que Deus desse a todos um bom dia e que todos fossem felizes em suas vidas. Pedia também por todos os povos do mundo, evocando o nome de Cristo pedindo maior respeito dos governantes ao seu povo e paz no reino dos homens.
Todos fizeram suas próprias orações, de cabeça baixa, uns pedindo a Deus o doce visto na véspera, outros a conquista de um novo bem.
Os que terminavam, faziam o sinal-da-cruz e sentavam-se em silêncio, respeitando aqueles que queriam mais que eles próprios e não haviam ainda acabado sua oração.
A professora sentou-se; um dos alunos percebeu e só então fez que terminava sua reza, compenetrado que estava em louvar aos céus sem se esquecer da terra. Jovem, bonita, cabelos loiros esvoaçantes, a professora sorria vendo seus alunos se entregarem completamente ao ato de fé.
– Bem, gente – ela disse depois. – Todos querem escutar a estorinha que eu vou contar?
– Queremos – respondeu a turma.
A professora correu a vista pelos olhinhos atentos dos alunos. Ela nunca preparava a estória que ia contar e estava tentando se recordar de alguma que eles não conhecessem. Como não se lembrava, apelou para a imaginação, prática que usava frequentemente, e principiou:
– Bem, gente, hoje vou contar uma lenda para vocês.
– Lenda de índio? ­– quis saber um aluno.
– Por quê?
– Porque gostei daquela última que a senhora contou.
– Deixa ela contar – protestou uma aluna com o companheiro que interrompera a aula.
– Silêncio – a professora exigiu, batendo com a quina do apagador na mesa.
Todos se aquietaram; uns apoiavam o rosto no braço estendido pela carteira, outros firmavam o pé no chão à frente do corpo.
– Está bem: vou contar uma lenda indígena.
– Oba!
– Vocês conhecem a estorinha do beija-flor com os marimbondos?
– Não – disseram alguns.
– Bem… – ela disse, ganhando tempo enquanto aquietava as ideias nos lugares certos. – Era uma vez, num alto galho de jabuticabeira… Vocês sabem o que é jabuticabeira, né?
Os alunos fizeram que sim com a cabeça. Ela sempre usava esse recurso de perguntas enquanto inventava as estórias, assim ganhava tempo e imaginava melhor as situações. Só achava ruim porque sempre introduzia ideias, opiniões, e não se sentia bem em dizer o que pensava “a essas pobres criancinhas inocentes do mal do mundo”.
– Bem – ela prosseguiu. – No mais alto galho de frondosa jabuticabeira vivia em paz enorme casa de marimbondos. Eram muitos e viviam todos em perfeita harmonia. Vocês já viram como uma casa de marimbondos é cheinha deles, não viram?
Ela olhou seus alunos, satisfeita consigo mesma porque aquela estória parecia ser mesmo lenda indígena.
– Acontece – ela continuou – que morava por ali um beija-flor desses bem bonitos. O beija-flor ficava enciumado porque os marimbondos também saíam beijando as flores.
A professora fez uma pausa; uma mosca ziguezagueava acima das cabecinhas atentas; os olhos dos alunos vibravam na emoção antecipada da estória que ouviriam.
– Numa primavera, em certo ano, as flores foram poucas e o beija-flor não se satisfazia nunca. “Aqueles importunos me roubam todo o mel”, pensava o egoísta do beija-flor, sem se lembrar que as coisas são para todos. Vocês estão entendendo, né? – ela perguntou. – Bem… Então o beija-flor fez uma divisão na árvore: propôs que os marimbondos ficassem de um lado que ele ficaria do outro. E assim o beija-flor escolheu a metade Norte da jabuticabeira, deixando o lado Sul para os marimbondos.
A professora quis saber:
– Vocês estão gostando da fábula?
Todos disseram que sim. Ela ficou quieta, enquanto a estória se completava na sua imaginação.
– Bem – ela recomeçou, – acontece que o beija-flor, como se transformara praticamente no chefe da jabuticabeira, apesar de dividi-la com os marimbondos, disse depois que apenas metade da árvore não satisfazia suas necessidades e que os marimbondos eram pequenos, e depois mentiu que eles eram poucos.
– Professora – um aluno chamou.
– Quê que é?
– Mas os marimbondos não eram poucos, eles eram muitos.
Alguns alunos vaiaram o colega. A professora exigiu silêncio.
– Sim – ela disse, – os marimbondos eram muitos. O beija-flor estava mentindo para ficar com um pedaço da jabuticabeira que antes era dos marimbondos.
– Tá vendo, seu bobo – um aluno maiorzinho zombou o outro.
– Gente!… – a professora zangou. Depois prosseguiu: – Aí o beija-flor disse que não era justo ficar só com metade da árvore, que precisava ter também o lado Leste, onde nasce o sol. Os marimbondos ficaram contrariados como fica o povo quando o Presidente da República reconhece que o preço das coisas está aumentando sem parar. Eles não queriam, mas acabaram cedendo e ficando só com o restante da jabuticabeira. Vocês estão entendendo, né?
– Eu não.
– O quê que você não entendeu, Renato?
– Mas lá perto não tinha outras árvores onde eles pudessem ficar?
– Bem… ter, tinha; mas…
– Então – disse o garoto, – era só ir cada um pra uma.
– É que não tinha jabuticabeira e todos queriam ficar em jabuticabeira. E depois, as outras árvores também tinham os seus marimbondos e os seus beija-flores, entendeu?… – O aluno fez um gesto e ela pensou que ele não havia entendido. – Vou explicar melhor: o Brasil fica em um continente, não é?
– Fica.
– Mas se um brasileiro quiser ir para outro país do continente ou ir por exemplo para a Europa ele não pode só querer e ir, ele primeiro tem que pedir pro governo e ver se o governo deixa, né?… Pro governo nosso e pro governo do outro país, não é?
– É, sim.
– O mesmo acontecia lá: cada árvore era um país. Só que lá nenhum governo deixava sair. Ir embora era considerado alta traição à Pátria, entendeu?
– Entendi.
– Bem… Onde eu estava?
Vários alunos começaram a falar onde ela interrompera a estória.
– Não, não, pera aí… Já lembrei, pode deixar.
A professora sorriu, ajeitou os cabelos e disse:
– Então o beija-flor fez como um ditador severo e ordenou que os marimbondos ficassem só na parte Sul-Ocidental da jabuticabeira. Com o passar do tempo, o beija-flor foi ficando cada vez com mais ódio de ver aquela casa de marimbondos na árvore. Os marimbondos não se conformavam em ficar só no pedaço que agora era deles, mas não ousavam desobedecer às ordens do beija-flor. E ficavam tristes vendo o passarinho voar rapidamente de um galho ao outro, parecendo um rei, todo majestoso, passeando por seu reino e até mesmo saqueando mel nas flores da parte reservada aos marimbondos.
Ela fez uma pausa, expirou forte, tomou fôlego.
– Vai que um dia o beija-flor resolveu expulsar os marimbondos da árvore. Disse para eles: “Não aceito vocês mais aqui, sumam da minha jabuticabeira”. Os marimbondos, porém, gostavam muito daquele lugar, e mesmo se quisessem não tinham outra árvore para ir. Eles então disseram ao beija-flor que não iriam sair, que aquele era o lugar deixado por seus pais e que desrespeitariam a memória deles se fossem embora.
A professora mordeu o lábio; sentia no peito um carinho especial por aquela estória improvisada que lhe saía pura e infantil e ao mesmo tempo dizia metaforicamente muito do que ela pensava.
– O beija-flor, despótico, não aceitou tal ofensa às suas vontades e atacou imediatamente a casa dos marimbondos, disposto a destruí-la. Eles, brisa que se transforma em furacão, reagiram. Um grande grupo deles atacou o beija-flor. Em pouco tempo, o beija-flor não resistiu e caiu ao solo, onde morreu entre tremores, o sangue escorrendo pela cabeça e entrando nos olhos. Penas esvoaçavam no meio dos galhos e pousavam suavemente no chão. Vários marimbondos estavam mortos, mas o inimigo não existia mais. Eles reconstruíram o que fora estragado na sua casa pela briga, instituíram um regime de trabalho justo, igual e democrático e…
Lágrimas marejavam nos olhos da moça. Ela terminou:
– E… e foram felizes para sempre.
Os alunos estavam espantados: nunca haviam escutado estória contada com tanta emoção e sentiam-se também emocionados; alguns (embora sem formularem nem para si próprios) estavam gratos à professora por fábula tão bela. A professora sentou-se e ficou olhando para o ar.
O sol entrava pelo vitrô, a cortina era ligeiramente balançada pela brisa.

RAUER.
E foram felizes para sempre.
1ª. edição, 1989.

                                                                            Arte: Willia Katia Oliveira

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