Em Gabriel me disse uma vez…, Heloísa Matos Lins registra frases com a visão de mundo de seu filho Gabriel entre os quatro e os oito anos. Há interações de Gabriel com a escola, com a mãe, com o pai, com a televisão, com o mundo adulto, um mundo por deveras estranho.
As “tiradas” de Gabriel contém questionamentos implacavelmente lógicos, cheios de poesia e espanto. É um livro com o prazer da linguagem fontana de um poeta como Manoel de Barros. Na entrevista abaixo, Heloísa Matos Lins nos fala sobre Gabriel, sobre a construção do livro, sobre educação e sobre literatura.
Eis a entrevista com Heloísa Matos Lins:
Como lhe ocorreu começar os registros das falas e diálogos do Gabriel?
Percebi que havia muita importância no que ele dizia e que, com o tempo, eu iria esquecer se não registrasse. De início, as anotações eram só minhas, como recordação especial. Não pretendia publicá-las. Confesso que também perdi várias notas nesse caminho, porque nem sempre tinha condições de escrever, na sequência da fala dele…
O que conhecia e o que viu posteriormente que seja similar?
O modo como Arnaldo Antunes reuniu as ideias da filha, Rosa, como acompanhou expressões de sua lógica infantil, em “As coisas”, tocou-me muito. Lá a filha também fazia os desenhos. Livro lindo! Tem outro dele que eu também acho belíssimo que é sobre o filho Tomé, “Frases de Tomé aos 3 anos” que foram compiladas e ilustradas pelo Arnaldo. Essas obras foram uma inspiração (antiga que ficou latente) para reunir as memórias que eu tinha escrito e, por fim, resolver procurar um/a ilustrador/a, uma editora bacana e publicá-las.
No livro, o que lhe agrada mais?
Gosto muito da sincronia das ilustrações com as frases do Gabriel que compilei. Felipe, o ilustrador, mesmo sem nos conhecer pessoalmente, trouxe elementos muito singulares e ricos em detalhes que me levavam a revisitar as cenas narradas, de um outro modo. Os desenhos dele em aquarela me encantaram. Depois, conversando, descobri outras atuações interessantes na vida dele, outros talentos também. Enfim, gostei muito dessa confluência que aconteceu meio por acaso, além da qualidade artística das ilustrações dele para a composição da obra e dos sentidos ampliados e produzidos (para além das frases literais do Gabriel, da forma como eu as registrei e organizei, por exemplo).
Essa avaliação é da mãe, da educadora ou da mulher?
Penso que seja uma inteireza humana, nesses casos. Uma mistura completa desses lugares…
Com a poesia de quais poetas a poesia das descobertas do Gabriel parecem dialogar?
Acho que tem uma coisa um pouco comum da infância e ao mesmo tempo única (em cada criança) desse modo de pensar, de fazer poesia com as palavras, através de uma atenção e de sensibilidades que são mesmo delas na relação com tudo; quase o tempo todo se manifestam e sobre temas muitíssimo inusitados pra nós, já muito desacostumados a sentir e pensar o mundo por outras vias…Então, essas poesias soam universais, comuns, ainda que sejam também tão particulares!
Gabriel conhece a poesia do Manoel de Barros? Ele escuta canções de quais poetas?
Ele não teve tanto contato direto com a obra de Manoel de Barros, além de alguns livros que estão aqui em casa e disponíveis a ele (já que eu gosto muito da obra do Manoel). Ainda criança, lembro de ele ouvir e gostar bastante da “Arca de Noé”, de Vinícius e Toquinho. Tinha um livreto também com as letras e ilustrações que ele sempre pegava, enquanto escutava os CDs. Atualmente, ele gosta muito do Chico Buarque e de “Construção”, para minha surpresa até… Ele se sensibilizou muito com a poesia e com a música.
Como livros de literatura, e penso aqui no Gabriel…, podem ser lidos, curtidos, trabalhados e estudados em sala de aula
Considero que o primeiro gesto nosso, como adultos/as, seja oportunizar bons encontros entre as crianças, os livros e as histórias: seja através de um contato direto para que explorem e escolham as obras (muitas e com diferentes temas, abordagens, autorias, ilustrações, etc., de preferência) e também um contato mediado por nossas leituras e interpretações/ performances, comentários, etc. (não apenas como professoras/es, mas como leitores/as envolvidos/as, de fato, com a leitura e suas potencialidades). É preciso que façamos essa auto-análise também como leitores/as e os nossos desejos nesse campo…Ler não é uma atividade meramente técnica, como sabemos. Envolve (ou deveria envolver) uma dimensão afetiva imensa.
Em se tratando de sala de aula, penso que uma condição fundamental seja simplesmente não exigir a leitura como uma tarefa “escolarizada” (como lembrava Daniel Pennac: o primeiro direito do/a leitor/a é não ler! Ou seja, é preciso respeitar os direitos das crianças como leitoras, até quando não querem ler ou querem pular páginas, começar por outros começos, não responder o que acharam/ se acharam,etc.). Da forma como concebo, nosso papel é sempre convidar à leitura de outros mundos, de outras vidas, de outras possibilidades, através de estratégias que precisamos também inventar (que não sejam meras avaliações com fins escolares!), cotidianamente, a depender de cada criança, de cada singularidade e até de cada resistência (afinal tem muita coisa que as crianças podem gostar de fazer também, como experenciamos). Entendo que seja uma questão de buscar sincronizar nossos tempos e desejos (de adultos/as e crianças), sem atrapalharmos esse despertar das crianças para outras aventuras e descobertas… A escola, muitas vezes, está com pressa, considerando “seu destino” e as crianças não estão, como regra. Estão descobrindo outras coisas que também as encantam no mundo ou chamam mais a atenção ou despertam outros sentimentos/ sensações, enfim, estão tateando outras possibilidades de existência, nesse momento da vida. É preciso a nossa compreensão profunda a esse respeito, um compromisso central entre nós, adultos/as, e as infâncias.
Gabriel lê seu livro
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