Tanael Cesar Cotrim comenta seu livro O Rumo do Rosa na Rota do Zito.
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O LIVRO
João Guimarães Rosa lançou Grande Sertão: Veredas em 1956. Quatro anos antes, em 1952, participara de comitiva nos sertões dos Geraes, anotando tudo: peões, boiada, geografia, fauna, flora, ditos, histórias.
Cinquenta anos depois, em 2001, o vaqueiro mais novo daquela comitiva, Zito, refaz a travessia rosiana, indicando passos e falas do vaqueiro João ao jornalista Tanael Cesar Cotrim.
E agora, em 2022/2023, os tempos se encontram em O rumo do Rosa na rota do Zito, livro que une Rosa, Zito e Tanael nas memórias de Zito e no palmilhar de Tanael ao refazer a travessia de Rosa naquela comitiva de 1952.
O AUTOR
Tanael tem repassado sua travessia de leitura da obra rosiana desde jovem adolescente.
Originário de famílias sertanejas, baiana pelo pai, mineira através da mãe, Tanael nasceu no interior de São Paulo, na cidade de Campinas, em 1977.
Ainda criança, nos tempos de brincadeira de rua na periferia da cidade, descobriu a literatura na biblioteca da escola, o que despertou no menino o poder da leitura e a descoberta de outros mundos, outros lugares, e gentes, outras gentes, muitas gentes – e lá se foi o menino, ninguém mais segura.
Na juventude, cursou jornalismo e se dedicou à literatura, filosofia, antropologia. Amou Guimarães Rosa à primeira visada, embriagando-se de suas palavras e existências.
Tanael, além de jornalista, é pesquisador e curador de cinema. Fundou, com o amigo cineasta Danilo Dias de Freitas, o Verve Cineclube.
No texto abaixo, o jornalista Tanael Cesar Cotrim faz travessia diversa: percorre a subjetividade das leituras dos vários livros de João Guimarães Rosa – é um aperitivo ao livro, que pode ser pedido na Loja da Pangeia.
Vamos, além dos redemunhos, no carpir coletivo e na colheita partilhada, na travessia e na leitura?
O MEU SERTÃO ROSIANO
Tanael Cesar Cotrim
“E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa” – “A máquina do mundo”, Carlos Drummond de Andrade.
“Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se.” – João Guimarães Rosa,“Desenredo”, de Tutaméia.
Brasil Real. Brasil Simbólico. Brasil Genético. Os caminhos cruzados da vida. Começar a ler Guimarães Rosa ofereceu-se como desafio. Ultrapassar as primeiras páginas resultou em exercício disciplinado diário. Lida difícil. Perscrutar caminhos de inteligibilidade. A chamada “Cosmogonia Absoluta ‘Roseana’ ” exige determinação. Até o alumbramento com a linguagem moto-contínuo, uma nascente a jorrar perenemente a água de um caudaloso e profundo rio, permeado de seres enigmáticos e reais.
Grande Sertão: Veredas surgiu como cerrado enigma. Terminou como espanto. Encanto. Depois dele, seis meses com ele na cabeça, sem ler nada. Um anacoluto mental. “Nonada”. “Para pensar sou cão-mestre”, prospectou o kantiano Riobaldo. Zé Bebelo. O Demo. “Brisbrisa”. O Liso do Sussuarão: “O raso pior havente”. Diadorim. Otacília: “A moça da cara redonda”. Diadorim. Compadre Meu Quelemém. Diadorim. Hermógenes. Diadorim. Nhorinhá. Jagunço comendo gente pensando carne de macaco. Urucuia. Sucuriú. Diadorim. O infinito. A Canção de Siruiz. Ah… Canção de Siruiz.
Riobaldo Tatarana está na casa do padrinho abastado, Selorico Mendes, na Fazenda São Gregório, velando a mãe, quando o jagunço Siruiz entoa os versos:
Urubu é vila alta
Mais idosa do sertão
Padroeira minha vida
Vim de lá, volto mais não
Corro os dias nesses verdes
Meu boi mocho baetão
Buriti, água azulada
Carnaúba, sal do chão
Remanso de rio largo
Viola da solidão
Quando vou pra dar batalha
Convido meu coração
Rosa transcreve a cantiga popular Canção de Siruiz, cuja melodia perdeu-se de seus cadernos de anotação. A quadra é um guia, uma bússola, um mantra para Riobaldo enfrentar o viver perigoso do sertão: “Aquilo molhou minha idéia. O que eu guardo da memória é aquela madrugada dobrada inteira, os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o pisar dos cavalos e a Canção de Siruiz.” Guimarães Rosa era capaz de fundir A Sagração da Primavera, de Stravinsky, a canções dos rincões mais remotos e inóspitos do sertão. O erudito e o popular. O épico, o dramático, o cômico e o realista. As grandes formas e as intuições artísticas.
Sagarana trouxe surpresa diante da simplicidade sorrisoteira. “Sarapalha” entorpeceu, três leituras seguidas. “A fêmea mata em monotom.” “Corpo Fechado”. “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Targos, Tragédia, lindíssimo. Boi Calundu escoiceou a metafísica. Corpo de Baile desenvolveu-se às carradas. “O Recado do Morro”: Morro da Garça: Totemisa! Buriti tem um Burití-Totem. Entre Lélio e Lina deveria existir Lálio, e Luna. “No Urubuquaquá No Pinhém” o urubu é de um “preto que faz cinza”. Miguilim sonhou Dito no Mutum. Manuelzão ditou a morte.
Primeiras Estórias, idílico e lírico e violento. “Os Irmãos Dagobé” é um tratado linguístico. “Famigerado”. “A Terceira Margem do Rio”, como não? “Pirlimpsiquice”. Estas Estórias tem “Meu Tio, o Iauaretê”. Nada a dizer do ôncio e de Maria-Maria, a Pinima. Ave-Palavra é uma bela sacada póstuma. Magma, não. Tutaméia é uma força estupenda de concisão. Temas rurais e urbanos em revoluteio lógico de narrativa espiral. Contos curtos, experimentais, concentrados de sentido com o máximo de recursos em função do mínimo de termos. Entremeados de ensaios, ou meta-ensaios ficcionais.
No Itamaraty vagava a ideia de um diplomata com hábito desarrazoado para escritor: a pesquisa. Confirmada por Vinicius de Moraes através de Antonio Candido. Um sujeito quieto, tímido e estranho andava com listas de plantas, lugares e bichos de Minas Gerais. João Guimarães Rosa portava, no bolso inferior interno do casaco, um lápis afiado nas duas pontas e um bloco de anotações. Registrava em palavras o que via, enxergava, ouvia, escutava, olhava, sentia, tocava, lia… Pegava no ar e, a partir de então, era a coisa em si e por si através dele. O objeto desvelando suas propriedades formais e simbólicas, comunicativas. Agarrou a história toda de “A Terceira Margem do Rio” assim, como um goleiro, pongado no bonde de Copacabana.
Resolve experienciar o vivido em livro, redivivo na mente, e parte para uma expedição de boiadeiros. É recebido por Zito. E a vida muda, sub-repticiamente, para Rosa, Zito e a literatura. Criou uma obra singular na literatura brasileira, com temáticas próprias da cultura nacional em exercício inovador de linguagem. Não à toa, consideravam-no o rapsodo do sertão mineiro, os Geraes, aquele que capta, coleciona e reelabora histórias do povo local. Transforma a escrita com a oralidade que marca a tradição iletrada do ambiente. Articula ritmos, neologizando: “Um tico-tiquinho de arroio, um esguicho ágil que mijemijava.”. Cria neologismos e onomatopéias, com o ouvido em melopeia: “Silvo de plim.” Pulsante e obsessiva criatividade lingüística.
Rosa chega à Fazenda Sirga, para a saga por 240 quilômetros dentro dos Geraes, num frio fino de um 13 de maio. Participa de uma festa local de inauguração da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no cemitério onde enterrara sua mãe um certo Manuel Nardi. O Manuelzão mesmo, em carne e osso, de “Uma Estória de Amor”. Miguilim, o menino poeta alter-ego de Guimarães Rosa, míope morador dos fundões do bonito Mutum, personagem central de “Campo Geral”, é um acanhado garoto da Casa Sede da Sirga, cognominado Miguilinho, amigo inseparável de Zil. O rabequeiro Chico Brabós é o fazendeiro Francisco Barbosa.
Zito é um personagem do conto “A Partida do Audaz Navegante”, do livro Primeiras Estórias. Mas Zito é real também. E afirmo, pois o entrevistei para o livro O Rumo do Rosa na Rota de Zito. Num ensolarado azul de um sábado de julho de 2001, em Três Marias, esmiuçou Rosa nos 11 dias de contato entre a Fazenda Sirga, em Três Marias, e a Fazenda São Francisco, em Araçaí , na vanguarda de uma comitiva de boiada, em Maio de 1952, há 70/71 anos.
Guiou a expedição e o escritor, escanchado na mula Balalaika, com um caderno e lápis apontado nos dois lados para anotações. “Eles chegaram de noite, num jipe. Aí ele chegou e eu perguntei – O senhor que é o doutor Rosa? Ele respondeu – Doutor não, vaqueiro Rosa. Não podia chamar de doutor na viagem não. – Doutor é no Rio, aqui não, aqui é vaqueiro Rosa.
Viver com Zito escancarou uma literatura criada do chão, do pó das sendas, das pedras de Maquiné, do sal do cocho, das estrelas tão alumiadas somente ali. O mundo recriado em exercício sublime de criação. Catalogou nomes regionais de animais, rios, plantas e lugares. Sondou a fala do geralista mineiro e a trouxe para sua literatura. Histórias, fatos, notícias, recados, disse-me-disse, diz-que-me-disse…
“Tudo o que pensar de perguntar no mundo ele perguntou. Ele nem ia lembrar tudo. O Rosa perguntava de tudo. Um dia… Ele… Isso foi pertinho da Tolda, um Cerradão. Tinha um pau seco, assim, tudo torto. – Para que que serve esse pau? Ele perguntou. Não tinha nada a responder. Eu falei. – É para papagaio chocar. Ele falou. – Você tem resposta pra tudo. Depois que a gente se acostumou com ele, era normal. Tinha que responder aquilo que ele perguntava. Era o dia inteirinho. E escrevendo. Cortou um lápis no meio, pôs um cordão e amarrou no botão da camisa, e uma caderneta de arame, passada no pescoço, pendurada. Andando, ele escrevia tudo.”
Enfim… Histórias. Histórias do período em que Rosa e Zito rumaram pelos Gerais… E a literatura de João Guimarães Rosa ganhou o mundo.
SERVIÇO:
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