Carlos Rodrigues Brandão, com o livro Pequeno Inventário de Memórias: 60 anos de presença e militância na educação popular – 1961-2021, no dizer do pesquisador César Ferreira da Silva, “nos deixa o legado de uma obra-prima definitiva”. Sobre essa autobiografia intelectual, que tem início nas lembranças da infância, publicamos abaixo resenha de Mara Chiari. O livro de Carlos Rodrigues Brandão (para mais informações, clique AQUI) é o volume inaugural da Coleção Eu, Professor, da Editora Pangeia,
A Pedagogia da Cooperação na obra
de Carlos Rodrigues Brandão
Mara Chiari
A Pangeia Editora, voltada especialmente para publicações na área das ciências humanas, apresenta sua Coleção Eu, Professor, em que registra perfis memorialísticos de grandes profissionais da Educação Brasileira, iniciando, magistralmente, por este Pequeno Inventário de Memórias: 60 anos de presença e militância na educação popular – 1961-2021, em que Carlos Rodrigues Brandão relata suas lembranças e vivências na (a)ventura de aprender, ensinar, pesquisar.
Este carioca de Copacabana, que viveu seus primeiros anos sobre os galhos de mangueiras e furando ondas nas “taboas de jacarés”, em sonhos por viver em faróis e ilhas desertas, este educador profundamente conectado à natureza, conectado à vida, ao povo do campo e sua cultura, criou a tessitura de uma Pedagogia da Vida, fruto de uma construção iniciada com os saberes das brincadeiras, dos mundos da fantasia, dos momentos de solidão e do convívio com amigos, sua experiência como escalador de altas montanhas – em especial na “cordada”, com todos os companheiros unidos pela mesma corda, e se responsabilizando pelas vidas uns dos outros – e sua formação em antropologia e incursões sinuosas pela filosofia, psicologia e sonhos com a engenharia.
“Meu mundo foram mundos”, nos segreda, ao confidenciar, generosamente, suas memórias sobre seu Brasil profundo e suas gentes.
A experiência em educação desse “andarilho de campos e matos” traz a marca da “consciência da cooperação”, do convívio e da comunhão, forjada nos coletivos espontâneos de pessoas livres, pobres de hierarquia e envoltos em espaços de amizade, fidelidade e cumplicidade. Foi sua vivência dessas “unidades socializadoras” que definiram os campos de pesquisa e ação a que Brandão dedicaria mais de meio século: os camponeses, suas vidas, seus imaginários, suas lutas, seus rituais e suas celebrações.
Cada capítulo desse Inventário resgata diferentes momentos de sua formação. São os anos iniciais em Copacabana e na Gávea em “Diante do Mar Imenso”; a juventude como andarilho em caminhadas por campos e matos, em “Aprender entre trilhas – trilheiro, escoteiro, montanhista”; os anos de escola e o da Escola Preparatória dos Cadetes do Ar em Barbacena, em “Um lugar chamado escola” e “A escola do menino militar”.
Um mergulho traumático em um rio – em Itatiaia, em janeiro de 1957 – mudaria o rumo da história de nosso mergulhador. O acidente que provocou uma fratura na coluna e um longo período de hospitalização, descrito em “Um outro eu, de repente”, resultou na “conversão de mim em mim mesmo”, nas palavras do autor. Os longos momentos de solidão, reflexão, estudos e o despertar para a poesia, além de uma crescente preocupação com o sentido da vida, o levaram ao curso de Filosofia, ao curso de Psicologia e ao engajamento na J.U.C. – Juventude Universitária Católica, como nos relata em “ A universidade e a vida universitária entre estudos e militâncias”.
No capítulo “Da militância estudantil à educação popular”, Brandão relata como, através do Movimento de Educação de Base, MEB, ingressou de vez no mundo da educação popular, nas “Caravanas de Cultura” e nos “Encontros com a Comunidade”. O “estudante-engajado” transformado em “profissional-militante” confidencia:
Participei de momentos da Ação Popular. Estive ativamente presente em momentos essenciais da criação e do “espalhamento” da educação popular pelo Brasil e, depois, pela America Latina […] a frentes de resistência à ditadura militar, de lutas emancipatórias. E assim, até hoje, já nos meus 81 anos. (Pequeno Inventário de Memórias, p. 142).
Em “Os Anos escuros da Ditadura” e “O Professor entre a Universidade de Brasilia e a Federal de Goiás”, compreendemos como o “imprevisto e inesperado”, sempre presentes na vida de Carlos Rodrigues Brandão, o levaram de profissional do IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, a professor na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, da Universidade Federal de Goiás, e, sob os terríveis anos da ditadura militar no Brasil, peregrinar por Argentina, Costa Rica e Uruguai, levando as propostas do Método Paulo Freire.
E também a publicar, em Buenos Aires, pela Editora Siglo XXI, seu primeiro livro sobre educação, Educación Popular y processo de conscientizacion, que, naqueles tempos tão duros, um teólogo militante uruguaio, Júlio Barreiro, foi escolhido para assinar, para não colocar ainda mais em risco o educador brasileiro.
O capítulo “A descoberta do outro – a antropologia” nos confidencia sua travessia para “a terceira margem do rio”, em que Brandão reencontra “sua gente” e “sua tribo”, através da Antropologia.
A partir deste instante, esse “professor-peregrino”, incansável, envolvido definitivamente com a cultura popular e os movimentos de cultura popular, entende que “as diferentes culturas do povo entraram pela porta da frente” de sua vida (p. 169).
A partir de então, quantas e quantas experiências!
Brasil, Argentina, México, Inglaterra, Espanha, Itália!!!!
Voltando-se cada vez mais para a educação popular e coordenando pesquisas pela UNICAMP, e em tantas outras universidades de Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás e também na Argentina,como na Faculdade de Educação da Universidade de Lujan.
Este educador querido criou a “Rosa dos Ventos”, no sul de Minas, como casa de acolhida e de partilhas, com porteiras, portas e janelas sempre abertas, e mantém uma página igualmente aberta, https://apartilhadavida.com.br
Carlos Rodrigues Brandão conclui assim suas memórias:
Parece que viver a polissemia do acontecer, participar do que existe e se move, seja no campo da militância, seja no campo da pesquisa científica, sem colocar “tudo isso” no papel ou na tela, sem contar, narrar ou dizer “isto tudo” para mim ou para outras e outros por escrito, é como não haver vivido inteiramente tudo o que pensei. Ou é como não sentir e não pensar por inteiro o que vivi…
Brandão talvez saiba, talvez não… ele continua e seguirá sendo o insubstituível guia de todas as “cordadas”, em nossas vidas de educadores e trilheiros por convicção.