Escrever ou não, eis a questão – por Jorge Fernando dos Santos

Escrever ou não, eis a questão

 

Nunca foi tão difícil escrever. Não por falta de inspiração, mas por excesso de censura. Censura politicamente correta à esquerda; censura neomoralista à direita. Autocensura, na melhor das hipóteses. Afinal de contas, como agradar a gregos e troianos em tempos de tanta hipocrisia?

Convém lembrar que aquele que escreve para agradar, ou apenas para ficar “bem na fita”, corre o risco de falsear a verdade. Verdade esta que, a despeito do relativismo da hora, deve pairar sobre tudo e sobre todos. Contra tudo e conta todos, se preciso for, não importa o preço a ser pago.

Não há como driblar os modismos, as patrulhas ideológicas e os paranoicos que espreitam nas redes sociais. Os idiotas são maioria e contra eles não há solução. Gente que se comporta como o Big Brother de Orwell, sempre com o indicador em riste, disposta a destruir reputações.

No entanto, o pensamento é algo líquido. Ele vaza pelo subtexto à revelia de quem escreve. A interpretação cabe aos leitores. Como escreveu Graciliano Ramos em Memórias do cárcere, “liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social”.

 

Fogueira metafórica

Nem mesmo no auge do Estado Novo, ou em plena ditadura militar, fomos tão patrulhados. É verdade que o escritor podia ser preso por emitir opinião contrária aos donos do poder. Sua obra corria o risco de ser queimada em praça pública. Hoje, no entanto, é o escritor que se arrisca a ser queimado, ainda que de forma metafórica.

Vivemos, teoricamente, em plena democracia. Teoricamente, ressaltemos, pois em nome da liberdade e da segurança somos vigiados por câmeras nos lugares mais improváveis. Nossa imagem pode viajar pela Internet e as conversas telefônicas, grampeadas, editadas e divulgadas fora de contexto. Basta um ato falho para ser visto como homofóbico, misógino, racista, comunista, golpista, fascista ou reacionário. Uma saraivada de adjetivos para o desespero de qualquer escritor.

O ato de pensar tornou-se uma faca de dois gumes, apontada para a garganta daquele que insiste em refletir de forma independente, avesso às ideologias e às causas midiáticas. Quem ousa questionar nos dias de hoje pode ser cancelado ou ter a moral arruinada num click.

Tempos estranhos, dirão aqueles que viveram em outros tempos. Contudo, ainda que nos obriguem a beber a cicuta, é preciso escrever. Mesmo correndo o risco de ser cortada, uma árvore não deixa de espalhar folhas, flores e frutos. Foi por meio da escrita que deixamos as cavernas e adentramos a civilização. Não escrever seria contribuir para a ignorância, a barbárie e o retrocesso do gênero humano.

Publicação original,
replicada com autorização do autor, em:

 

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