Reproduzimos abaixo artigo de opinião do escritor e jornalista angolano João Melo. O artigo foi publicado originalmente no Diário de Notícias, de Lisboa.
O jadnovismo de novo tipo
João Melo
Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África
Andrei Jadnov (1896-1948) foi um ideólogo cultural da antiga União Soviética, tendo ocupado, entre outros, o cargo de chefe do Departamento de Agitação e Propaganda do Comité Central do Partido Comunista. O seu nome está ligado a uma das características estruturantes do socialismo marxista-leninista, a saber, o dirigismo cultural, de acordo com o qual os artistas em geral deveriam estar ao serviço do socialismo e produzir uma obra consentânea com essa “obrigação”. Na literatura, isso implicava a adesão ao “realismo socialista”, caracterizado, resumidamente, por obras que retratassem de maneira literal as classes trabalhadoras, exaltando os seus interesses e colocando-se inequivocamente ao lado das suas lutas. Tratava-se, digamos assim, de um certo tipo de literatura engajada estrita.
Os poucos que acompanham a minha obra sabem que sempre pratiquei literatura de cariz social e político. Isso não me impede, entretanto, de afirmar que, devido a essa imposição feita aos artistas em geral, a maioria dos trabalhos produzidos deliberadamente para obedecer à orientação em causa foi quase sempre medíocre e confrangedora. É verdade que os artistas e escritores comprometidos social e politicamente sempre foram capazes, em todas as épocas, de produzir obras magníficas e mesmo geniais, mas isso aconteceu apesar desse equivocado dirigismo cultural (para não dizer contra ele), muito mais nefasto à arte e à literatura empenhadas do que alguns talvez imaginem.
O facto é que o jadnovismo virou sinónimo do que não deve ser feito. É com estranheza, assim, que assistimos hoje, no campo das artes em geral, à emergência de um jadnovismo de novo tipo. Limitando-me à praia que me interessa (a literatura), vou referir-me ao variado catálogo de “literaturas militantes” que todos os dias é engrossado com um novo item (a linguagem fria e “marqueteira” é intencional): literatura negra, literatura feminista, literatura gay, literatura lésbica, literatura queer, literatura trans, literatura indígena, que sabemos nós?
Além dessa atomização e fragmentação crescentes, à semelhança do que acontece com as lutas sociais (aliás, as “literaturas militantes” tendem a ser usadas como instrumento das lutas sociais, o que revela a sua inspiração jadnovista), uma outra tendência chama a atenção: a identificação entre temáticas e autores, segundo a qual, por exemplo, apenas negros podem fazer literatura “negra”, mulheres podem fazer literatura “feminista”, gays podem fazer literatura “gay” ou indígenas (índios) podem fazer literatura “indígena”; vistas as coisas por outro ângulo, negros, mulheres, gays e indígenas, por exemplo, só podem fazer, respetivamente, literatura “negra”, “feminista”, “gay” ou “indígena”.
Tal tendência insere-se na estratégia do neoliberalismo de colocar todos contra todos, através de diferentes processos de contínua fragmentação, atomização e divisão. Não é ocasional, para mim, que esse movimento tenha nascido nas principais universidades norte-americanas, de onde foi exportada primeiro para o mundo anglo-saxónico e depois para as demais regiões do planeta. A atribuição da sua paternidade a uma suposta “esquerda” batizada como woke, levando setores progressistas e de esquerda de todo o mundo a acolhê-la acriticamente, confirma a competência das forças neoliberais que têm controlado o funcionamento do mundo desde os anos 80 do século passado.
Não, não é nenhuma teoria da conspiração. Para nos atermos ao campo de que trata esta crónica, perguntemo-nos, desde logo: por que razão ninguém fala mais em “literatura proletária” (independentemente do mérito artístico desta última, o qual, na verdade, pode ser equivalente, para o bem ou para o mal, ao de qualquer outro tipo de literatura)? Por outro lado, já é tempo de começar a reconhecer que o radicalismo (diferente de “radicalidade”) woke, com os seus divisionismos, essencialismos, censuras e cancelamentos, abdicando do historicismo e do universalismo, contribui para o fortalecimento da extrema direita a que se assiste em todo o mundo, pois empurra para os braços desta última setores do centro e da direita que não se reconhecem nessa visão extremada, supostamente vanguardista, mas de facto autoritária. O capitalismo financeiro-tecnológico (o outro nome do neoliberalismo), com os seus processos de exacerbação do individualismo e do isolamento (veja-se a “uberização” do trabalho), agradece.
Em suma: o novo jadnovismo é neoliberal. Alguns artistas e escritores negros, mulheres, gays, lésbicas, trans, indígenas e outros acederão mais facilmente ao mercado, nacional e global, terão sucesso, maior ou menor, e serão eventualmente capa da Vogue. A maioria, entretanto, continuará a penar. Mas, espera-se, a escrever. O futuro acabará por reconhecer alguns deles.
Diário de Notícias, Lisboa, Portugal, 18 de abril de 2023
https://www.dn.pt/opiniao/o-jadnovismo-de-novo-tipo-16192306.html
Reprodução autorizada pelo Autor
18 Abril 2023 — 01h12
João Melo
Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África