O novo e décimo-terceiro livro do escritor Rauer Ribeiro Rodrigues (que assina seus livros somente como Rauer), Ab ácido: estórias, que acaba de ser lançado no selo Pangeia da Pangeia Editorial, é dividido em três partes que se diferenciam em tom na abordagem dos cenários e personagens.
A primeira parte, Abranúncio, traz epígrafe – recriada de Pântanos, romance de André Gide – que se assemelha a um microconto e remete ao primeiro livro de Rauer Ribeiro Rodrigues, Lugares intoleráveis, publicado em 1982; Rauer – na época, um jovem escritor de 23 anos – retrata vivências contemporâneas nos tempos da ditadura civil-militar. Abranúncio traz três contos – “Um cálice”, “Aisa” e “Tortolindo” – que alinhavam a natureza e a densidade de conteúdo que os demais contos do livro vão retomar.
“Um cálice” encena um diálogo de cônjuges, aparentemente trivial, mas que revela – nas entrelinhas, e com o final mais do que inesperado – importantes sinais de desgaste nas relações amorosas.
Em “Aisa”, a personagem-narradora é um adolescente que, ao reencontrar sua madrinha de batismo, se depara com sentimentos que ultrapassam as fronteiras da afiliação, em jogo de insinuações e descobertas.
O terceiro conto, “Tortolindo”, apresenta a biografia de um escritor inadequado para os padrões políticos de um Brasil sob as ditaduras do século XX (a de Vargas e a de 1964-1985). Na narrativa, Rauer desafia diversos gêneros, da reportagem jornalística à crítica literária, da biografia ao ensaio, do conto à autoficção; e, também, além do percurso em diversas décadas do século passado, “passeia” por questões caras às gerações mais recentes.
A segunda parte de Ab ácido: estórias, denominada Veredas, traz como epígrafe uma dedicatória “Ao verme”, em recriação da página inicial do Brás Cubas machadiano . Em Veredas – oxalá uma menção a vocábulo caro a João Guimarães Rosa – estão os contos “Apócrifos”, “Na fronha do travesseiro”, “E o homem pisou na lua”, “Protofania” e “Testamento”.
Em “Apócrifos”, a personagem-protagonista, enquanto espera na rodoviária o ônibus que nunca chega, observa os acontecimentos e lê o Evangelho Apócrifo de São Tomé, que retrata um messias vingativo, “voluntarioso, anárquico, iníquo, indecente, desrazoável”. É nesse cenário que se desenrola uma ação improvável, apesar de possível, envolvendo personagens díspares, uma delas um indígena, em cena tanto mais brutal quanto mais comum se mantém em nosso país.
“A fronha do travesseiro” é um conto – digamos – romântico, mas que se mostra dissonante ao encenar a melancolia provocada por relações impossíveis de se completar condignamente.
Por seu lado, o conto “E o homem pisou na lua” é uma crítica ao desequilíbrio social evidenciado a partir de acontecimentos inquietantes que reforçam o abismo que separa classes e sujeitos, cidadãos e agentes públicos em um estado autoritário.
“Protofonia”, como sugere o nome, traz um ritmo eletrizante, ao encenar um homem preso no minúsculo banheiro de um avião com problemas mecânicos, em cenário apocalíptico.
Já o conto “Testamento” é uma carta na qual a personagem, um homem de idade, lúcido e iconoclasta, desfia escolhas heterodoxas, afetos e desafetos, e revela suas idiossincrasias. O final, anunciado desde o início, ainda assim surpreende.
A terceira parte do livro, Som e Fúria (Faulkner ou Shakespeare?), traz contos que tematizam o amor, do individual ao coletivo, do amor ao clã ou à família ao amor à humanidade como um todo, epigrafados com a frase (ou micropoema?) “Amor nenhum dispensa / uma gota de ácido”, retomado de Carlos Drummond de Andrade. Semelhante à segunda parte do volume, também traz cinco contos, perfazendo treze narrativas no livro: “Kratos”, “Ahímè!”, “Alma morta”, “O trato e o distrato” e “No teatro”.
Em “Kratos”, a personagem principal é um homem que, ao voltar para casa – depois de dois meses viajando – se depara com um cotidiano familiar no qual seus afetos não se encaixam; ao contrário, o regresso ao lar desse antiprotótipo de Ulisses é de fúria e de antipatia.
“Ahímè!”, a segunda narrativa desse bloco, nos encena o enredo de uma menina negligenciada por sua mãe em benefício do caçula e que encontra, em sua tia, a disponibilidade necessária para despejar suas angústias e crueldades infantis. Textualmente, o discurso do conto apresenta um modo de narrar que mescla, de maneira feliz e que potencializa o vigor da narrativa, o fluxo de consciência da protagonista com inserções dela mesma na função de narradora autodiegética que, eventualmente, parece se ver de fora, de modo heterodiegético.
“Alma morta” é um conto intrigante, mesmo nesse conjunto de contos todos eles intrigantes, tanto no enredo quanto no modo de narrar, pois rompe com o convencional do pai que endeusa e ama a filha recém-nascida. A personagem pai apresenta comportamento desconexo, controverso, inesperado, o que – inclusive – pode provocar certa aversão ao leitor desavisado.
A originalidade dos textos deste livro está bem configurada no conto “O trato e o distrato”, pela inovação estrutural e semântica. Trata-se de um depoimento, provavelmente em uma instância jurídica, cartorial ou investigativa, de uma personagem não letrada, um homem que passou a vida isolado com a família em zona rural afastada, rico em vivências populares, e que discorre sobre seu casamento (mal) arranjado pela família e ao qual está submetido, em universo patriarcal, com algo kafkiano, que defende e reproduz.
“No teatro” é o último conto do livro, mas nem por isso é menos especial. Estruturado como uma peça teatral, o texto mescla sentimentos e idiossincrasias de atores, técnicos e expectadores em uma visão ácida e crua do real.
Enfim, o livro de Rauer reúne treze narrativas, dezenas de tons, dezenas de diferentes modos de narrar, um turbilhão de emoções vivenciados por protagonistas, por personagens e por nós que mergulhamos na leitura desses contos densos, fortes e criativos.
Em face dos textos relatados, é possível aferir que em Ab ácido: estórias o autor se revela um inovador, um transgressor do gênero conto, mas, ao mesmo tempo, um apaixonado reverenciador dos ícones do gênero na forma como engendra as narrativas e permeia seus significados. Grande conhecedor das teorias do conto, à qual se dedica e ensina como professor universitário, na graduação e na pós-graduação, seu novo livro vem mostrar que o conhecimento permite ao escritor ser original e criativo, sem, contudo, se desviar em criações carentes de conteúdo pragmático que as justifique. Desse modo, nos mostra que a literatura é atemporal e se movimenta na medida da interlocução com o leitor
E o livro se fecha, nas páginas finais, com algumas surpresas nos paratextos editoriais: após concluir a leitura dos contos, há uma táboa cronológica das produções do autor, há uma entrevista, curta, mas saborosa, e há informação sobre a origem das epígrafes – e o microconto, a ironia aforística e o micropoema – assim como os títulos das partes em que o livro se divide – se mostram recriações intertextuais de altíssima voltagem.
Em suma, Rauer revela o real de mundos “desconhecidos”, mas que latejam nas entranhas do Brasil e da decadente civilização ocidental; vemos desfilar o absurdo de relações humanas que se estremecem à visão de um cotidiano inefável, recheado de acontecimentos satíricos, cruéis e conflitantes, expondo à razão, na voz cética de um arqui-narrador que ainda crê no humano, um desafiador processo de repensar os valores que permeiam a nossa sociedade.
Embora os contos de Ab ácido: estórias possam ser lidos “de uma assentada”, como teorizou Edgar Allan Poe, sugiro que o leitor se assente algumas vezes mais e releia diversas vezes cada uma dessas narrativas – há universos subjacentes que só podem ser desbravados com várias e acuradas leituras, muito embora haja imensa satisfação na leitura rápida, tendo em vista tão só o prazer momentâneo da leitura. Não tenho dúvidas de que estamos, com este Ab ácido: estórias, de Rauer, diante de uma manifestação literária precursora e genial.
Willia Katia Oliveira Silva e Costa é poeta, graduada em Letras,
com pós-graduação em Mídias na Educação e em Comunicação
Serviço:
RAUER.
Ab ácido: estórias.
Pangeia, 2021.
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